SL - 57 DIREITO À CIDADE NA MUNDIALIZAÇÃO FINANCEIRA: TRANSFORMAÇÕES RECENTES NA POLÍTICA HABITACIONAL E NO CIRCUITO IMOBILIÁRIO NO BRASIL
Resumo
O aumento do crédito e da produção residencial a partir de meados dos anos 2000 gerou, além de efeitos quantitativos, transformações qualitativas importantes na paisagem urbana brasileira, que representam novos desafios para a luta pelo direito à cidade e para o pensamento crítico.
Mecanismos jurídicos, financeiros e urbanísticos e novos produtos imobiliários, parcialmente inspirados pelo mesmo modelo de mercantilização da casa pela via financeira, em expansão desde a década de 1980 em diversos países, recaem sobre estruturas sociais e institucionais muito diferentes, e padrões de acumulação distintos, alimentando circuitos locais mais ou menos articulados internacionalmente. Produzem, assim, consequências diferentes em cada país e desdobramentos também diferenciados em cada região ou cidade, exigindo estudos empíricos e novas interpretações teóricas.
Partimos da hipótese de que nos anos 1990, quando as políticas de estabilidade monetária, abertura econômica, privatizações e desregulamentação inseriam o Brasil na mundialização financeira, o caráter estreito, segmentado e estratificado do circuito imobiliário o mantinha como órbita reservada das elites brasileiras e as transformações restringiam-se a poucas fronteiras de expansão. O imobiliário não acompanhava a internacionalização de outros setores e continuava comandado pelo capital nacional mercantil (Fix, 2012).
Na fase de expansão material do sistema capitalista no século XX, o fundo público, nos países desenvolvidos, constituía a principal fonte de financiamento da política habitacional. Neste sentido, é possível afirmar que os padrões de financiamento da política habitacional traduzem o movimento de transformação dos padrões de acumulação capitalista. O orçamento público e os fundos financeiros do Estado deixaram de ser responsáveis pela universalização das políticas públicas, limitando-se ao atendimento de demandas focalizadas e ao fomento das economias de mercado. No Brasil, a crise de financiamento do Estado serviu de pretexto para conter as aspirações transformadoras embutidas na efetivação dos direitos sociais, reduzindo o projeto nacional de desenvolvimento ao aperfeiçoamento das instituições de mercado (Royer, 2010).
Os fluxos de investimentos dirigidos ao circuito imobiliário produziram transformações na estrutura de propriedade das empresas, com repercussões sobre a sua estratégia temporal e territorial. As conexões entre o financeiro e o imobiliário interferem nas relações entre a escala local (estados e municípios), na qual costumava se movimentar o mercado imobiliário, e internacional, na qual se movimentamos fluxos comerciais, produtivos e, sobretudo, financeiros (Fix, 2012).
Nos anos 2000, no começo da gestão Lula (2002-2010), a escala do problema e as lutas sociais urbanas motivaram a criação de um ministério especificamente voltado para as cidades. As medidas adotadas ampliaram o mercado residencial, tradicionalmente restrito a menos de 30% da população brasileira (Maricato, 2009), ampliando o acesso ao crédito. Em um período de tempo curto, esse movimento de expansão encontrou barreiras. Nossa hipótese é de que essas barreiras são intrínsecas à formação social brasileira e ao modo como o capital imobiliário se reproduz no Brasil, em particular a disparidade de renda e a especulação fundiária.
Os problemas foram acirrados pela crise financeira mundial em 2008, quando as empresas de incorporação imobiliária lideraram a queda no mercado de ações. A crise financeira mundial serviu de pretexto para o problema habitacional ser elevado a uma questão nacional, algo inédito desde a extinção do BNH. Isso ocorreu, contudo, nos teremos propostos pelo setor imobiliário por meio do programa Minha Casa Minha Vida, em 2009, inicialmente desenhado para a construção de um milhão de moradias (Arantes e Fix, 2009). O programa contornou algumas das barreiras que limitavam o alargamento do circuito imobiliário e deu suporta a continuação de sua expansão, tornando o processo de centralização e concentração de capital mais agudo (Fix, 2011). Na falta de uma política fundiária, promoveu o aumento da especulação imobiliária e expandiu o padrão predatório de expansão das cidades brasileiras.
Na Região Metropolitana de Belém (RMB), por exemplo, o PMCMV acentuou do caráter especulativo do mercado de terras e contribuiu para o aquecimento do setor da construção civil regional. A articulação de empresas locais com outras, sobretudo atuantes no Sudeste do país, em diversas etapas do processo de produção da habitação (prospecção, projeto, licenciamento, planejamento, incorporação, corretagem, venda), mostra que há possibilidade de rendimentos de interesse ao setor, no plano nacional, dentro do contexto de valorização da terra e alto preço de imóveis da RMB.
Por outro lado, a produção do PMCMV para as famílias de baixa renda na RMB e mesmo em outros municípios do estado do Pará, assim como em outras regiões do país, demonstra que a decisão de erradicar o déficit a partir da produção privada de habitação não é operacionalizada facilmente, gerando problemas de fluxo de investimento que garanta o subsídio aos mais pobres. Estudos sobre o tema sugerem, ainda, que os novos custos (transporte, tarifas, impostos), e o desmantelamento de redes de solidariedade tendem a acirrar os padrões de segregação sócio-espacial. As conseqüências urbanísticas dessa produção massiva de habitações populares tendem a aprofundar a produção de estruturas urbanas segregadas, dispersas e de difícil conexão com a rede de infraestrutura urbana e de serviços existentes, que induzem dinâmicas de expansão urbana condicionadas à estruturas fundiárias especulativas (Rodrigues et al, 2011; Rodrigues et al, s/d).
Em grande parte, isso se deve ao fato de que em Belém, aonde predomina um capital imobiliário de fortes raízes mercantis, os consensos legitimados pelos agentes da “máquina imobiliária” (cf. Logan e Molotch, 1987) local asseguraram que a atuação desses grupos se concentrasse em bairros específicos da área central, beneficiados com infraestrutura e intensificação do uso do solo a partir de coalizões em torno de interesses de agentes locais, membros da classe política e do próprio Estado ao longo dos anos.
Contudo, apesar de dialogar com esses agentes para se apropriar de uma expertise local quanto aos futuros eixos de valorização imobiliária, a atuação das incorporadoras de capital aberto, no caso de Belém, não segue o que fora legimitado pela “maquina imobiliária” local, e se segmenta em duas frentes distintas. Em bairros da área central estas empresas eliminam barreiras que haviam sido formadas para o incorporador local em função da sua limitada escala de capital, ao mesmo tempo que, em áreas de expansão urbana, sua atuação se encarrega de consolidar frentes imobiliárias em bairros que não interessavam aos agentes da Máquina Imobiliária local, atuando como ativistas estruturais e legitimando novos consensos frente à população como forma de influenciar na compra do imóvel (Ventura Neto, 2012). A mudança na organização da configuração do capital no setor imobiliário, observada no contexto nacional pela financeirização das grandes empresas torna-se também evidente em um contexto regional, como se procura examinar para o caso da Região metropolitana de Fortaleza.
Nesta metrópole, o deslocamento das incorporadoras nacionais mostrou-se como um fator muito importante, principalmente na sofisticação de estratégias de produção e comercialização, visando à imposição de maiores ganhos à produção imobiliária. Essa expansão, entretanto, encontrou como entrave o caráter patrimonialista dos grandes grupos econômicos locais (Rufino, 2012).
A condição de privilégio assumida por esses agentes parece derivar da própria formação histórica da metrópole, onde diferentemente do restante da região Nordeste, os empresários locais patrocinaram o processo de industrialização e assumiram posteriormente o controle político do estado.
O empenho desse grupo na consolidação de uma política de desenvolvimento do turismo, fortemente baseada em intervenções no espaço, já havia sido determinante para um forte imbricamento entre as atividades deste setor e o imobiliário. Associação que foi determinante na atração de capital estrangeiro para a produção imobiliária de Fortaleza, sem uma necessária mediação do grande capital nacional.
O direcionamento de capital de grandes grupos econômicos locais para a produção do espaço foi reforçada nos últimos anos por meio de uma atuação mais direta, que se consolidou a partir da constituição de novas incorporadoras. A maior capacidade de investimento destes grupos econômicos locais derivou, em alguns casos, da mobilização de capital a partir da aquisição de suas indústrias e instituições financeiras por capitais monopolistas. As relações privilegiadas destes agentes com proprietários de terras associadas à forte valorização imobiliária reforçam a instrumentalização do espaço na reprodução de seus capitais.
Os conflitos intercapitalistas na reprodução do capital no espaço foram, entretanto, contornados, tanto pela ação do Estado, como pela própria articulação de diferentes agentes, baseada na existência das condições privilegiadas de reprodução do capital a partir de sua centralização.
Em síntese, esta sessão examina o processo de financeirização da política imobiliária no Brasil e as transformações recentes no circuito imobiliário. Discute as repercussões diferenciadas dessas mudanças no território brasileiro a partir do exame de seus desdobramentos em metrópoles situadas em três regiões brasileiras: Belém do Pará (Norte), Fortaleza (Nordeste) e São Paulo (Sudeste).Tem como objetivo, ao final, contribuir para a formulação de hipóteses sobre os novos desafios enfrentados pela luta pela luta do direto à cidade na mundialização financeira.