SL - 55 VAZIOS DO CENTRO: VAZIOS DA CIDADE? VAZIOS DO PLANEJAMENTO?
Resumo
Os processos de esvaziamento que atingem os núcleos urbanos centrais nas cidades brasileiras, desde o século passado, ganham novos contornos no início do século XXI, colocando em questão conceitos e práticas no campo do urbanismo e do planejamento urbano. Esta sessão livre se propõe, tendo os vazios urbanos como fio condutor, repensar as articulações entre estes núcleos originais e seus contextos urbanos, considerados em suas múltiplas escalas, a partir da análise das questões apontadas acima, como centro histórico, vacância, inserção urbana, políticas públicas, produção habitacional, patrimônio cultural, práticas projetuais e de planejamento.
Diversos processos de esvaziamento contribuíram para promover, entre outros efeitos, a degradação dos espaços públicos e do acervo edificado; a expulsão de antigos moradores, majoritariamente dos segmentos socioeconômicos de mais baixa renda; a transferência de atividades mais dinâmicas para novas áreas de expansão da malha urbana e, consequentemente, o descolamento entre o continente e o conteúdo, ou seja, entre o patrimônio edificado e suas múltiplas funções. Os vazios do centro são, portanto, vazios produzidos aos níveis social, econômico, simbólico e físico.
A promulgação do Estatuto das Cidades viabilizou a criação de instrumentos urbanísticos capazes de atuar sobre os imóveis vazios bem como o Plano de Reabilitação dos Centros Urbanos (2003), que parte do reconhecimento da grande quantidade destes imóveis nos centros das maiores cidades brasileiras para enfrentar questões fundamentais da política urbana como: o déficit habitacional, o despovoamento dos centros infraestruturados, atração de população de diversas classes sociais, diversidade funcional, recuperação das atividades econômicas, e a preservação do patrimônio cultural e ambiental. A reabilitação urbana desses centros, tal como concebida neste Plano, contribuiria para minimizar a segregação social e espacial, facultando a todos o direito à cidade, à economia e à vida urbana. Em algumas cidades este Plano tornou possíveis parcerias de cooperação internacionais, em outras a formulação de Planos de Ação e levantamentos de dados atualizados. O espectro de ação decorrente, no entanto, mostrou-se mais reduzido do que se anunciava inicialmente para as grandes cidades brasileiras.
Analisando esses processos, esta sessão livre traz os resultados das reflexões sobre a análise da vacância urbana nas áreas centrais das cidades do Rio de Janeiro e Salvador e suas interfaces com as práticas projetuais e de planejamento urbano, despertadas na parceria estabelecida entre o PROURB/FAU/UFRJ e o PPGAU/FAUUFBA, ao longo deste ano e, mais tarde, estendida, ao PPGAU/EAU/UFF. Inicia-se assim, com o diálogo sobre essas duas cidades, perspectivas de incorporar a interlocução com outras cidades brasileiras sobre essa temática.
Nas últimas décadas, Rio e Salvador têm sido objeto de planos de intervenção nas suas áreas centrais, conceitualmente distintos à cada fase. Mais recentemente, ambas estão sendo preparadas para receber o megaevento esportivo da Copa do Mundo, em 2014, com projetos em curso nas áreas centrais. A pretexto do curto prazo legislações são flexibilizadas, entre elas as que atuam sobre o ordenamento do solo, do território e do ambiente construído. O planejamento do evento se sobrepõe ao planejamento da cidade e tem suscitado novas parcerias público-privada, com grandes impactos no uso, ocupação e gestão do solo. A expulsão da população mais pobre torna-se regra, apenas uma pequena parcela permanece e não necessariamente, em suas próprias moradias. Junto com elas desaparecem também as atividades de economia de bairro.
No Rio, desde a última década novos investimentos, tanto públicos como privados, vem sendo realizados na cidade movidos por fatores políticos e econômicos. Além da Copa do Mundo, o Rio sediará outros megaeventos, entre eles, as Olimpíadas em 2016. O centro e, sobretudo, a área portuária, têm sido o foco de parte significativa destes investimentos. As intervenções urbanas, as reabilitações arquitetônicas do patrimônio edificado e as novas edificações destinadas, sobretudo, ao uso coorporativo, dão novas feições à antiga área portuária e dos antigos vazios do centro. Antigos vazios são transformados, surgem novos vazios com novas características.
Em Salvador, a intervenção de caráter de consumo cultural realizada no Pelourinho, passados vinte anos, mostra sinais de esgotamento, evidenciando que a substituição maciça da função residencial pela comercial turística determinou um novo ciclo do processo de esvaziamento da área. Diagnóstico recente, viabilizado pelo Plano de Reabilitação do Centro Antigo de Salvador (2007-2010) demonstra, entre outras indicações de decadência e vulnerabilidades, a existência de mais de mil imóveis fechados ou em ruínas, acrescidos de um número ainda maior de imóveis semi-ociosos, além da grande incidência de imóveis em estado precário. Evidencia-se o potencial para intensificação de uso habitacional diversificado e de alocação de atividades complementares, com perspectivas mais duradouras para a recuperação, preservação e integração urbana dessa área central. Entretanto, as intervenções pontuais recentes e os indicativos da ação pública para reabilitação têm apontado para a implementação de formas mais privatistas de operação urbana, que acabam por intensificar processos de gentrificação e exclusão social.
Os vazios do centro permanecem, assim, como um dos elementos estruturadores dessas áreas desafiando concepções pré-estabelecidas, práticas projetuais e a possibilidade de um planejamento de cidade mais integrado. Políticas de patrimônio cultural não dialogam com políticas habitacionais, ou mesmo com as políticas urbanas; os projetos arquitetônicos, mesmo que atendam às normas, não atendem a um planejamento urbanístico, de fortalecimento dessas áreas nas suas multiplicidades de usos, por exemplo; os projetos urbanos, neste momento de realização de megaeventos, raramente respeitam as identidades culturais, as especificidades locais, as redes de sociabilidade e as formas de habitar existentes. Como conseqüêencia os núcleos originais reingressam em um novo ciclo de esvaziamento: vazios sociais - casas sem gente, gente sem casa; ruas sem gente, gente na rua; vazios da insustentabilidade – casas e terrenos ocupados por uma profusão de automóveis que deveriam ter sua circulação limitada nestes centros; e mesmo novos vazios sobre cheios. Os vazios do centro apontam não apenas para questões relativas aos núcleos originais, à área central de negócios ou ao centro antigo, que lhes fazem limite, mas à cidade e à articulação entre eles; assim como a ausência de práticas de planejamento integradas às políticas públicas e projetos em curso. Eles evidenciam que alguma coisa está fora da ordem na maneira como estes centros têm sido enfocados e que é preciso reverter o quadro de esgotamento das formas de pensar, conceber, propor e planejar essas áreas. Os vazios do centro por se constituírem um dos elementos de dinamismo e inércia na paisagem desta área na qual as formas atuais da vida urbana convivem com o passado, como observou Milton Santo, em 1959, sobre o centro de Salvador, se constituem, portanto, em um ponto de partida instigante para pensar as cidades e a reinvenção dos seus centros a partir dos seus vazios. Esta reinvenção passa, necessariamente, pela compreensão da centralidade exercida pelos núcleos originais e por suas cidades no contexto urbano atual; pela proposição de ações integradas fundamentadas sobre um amplo conhecimento da vida urbana dos núcleos originais; e, por fim, que estas ações contemplem as diferentes escalas de inserção destes centros, de suas cidades e metrópoles.