SL - 04 O DIREITO À LEGALIDADE E A FUNÇÃO SOCIAL DA LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA

  • Ricardo de Sousa Moretti
  • Celso dos Santos Carvalho
  • Flávio José Magalhães Villaça
  • Ermínia Terezinha Menon Maricato
Palavras-chave: legislação urbanística, direito à legalidade, eficácia da legislação

Resumo

Na sessão livre será debatido o processo de formulação das leis relativas ao planejamento do território e dos procedimentos que podem ampliar as chances de que as normas venham a ser assimiladas e cumpridas pela sociedade. Faz-se necessário também avaliar se as normas estão cumprindo os objetivos para os quais foram propostas e se estão conseguindo contribuir para a melhoria da qualidade de vida de forma abrangente. O caráter elitista e descolado da realidade de parte de nossas normas urbanísticas faz com que a legalidade seja muitas vezes um privilégio, acessível apenas para uma parcela da população. A busca do direito à legalidade para todos passa a ser assim um verdadeiro desafio. Propõe-se debater esse desafio e avaliar em que medida estamos conseguindo avançar na ampliação do acesso à legalidade.
O planejamento do uso e ocupação do território tem na legislação um dos pilares da ação pública. Essa ação para ser efetiva precisa ser amparada por uma estrutura eficiente de gestão e aplicação das leis e de orientações de investimentos públicos coerentes com as diretrizes legais. Isso infelizmente poucas vezes acontece e tem-se um quadro usual de descumprimento das diretrizes legais, tanto de orientação ao parcelamento do solo, como de orientação ao uso e ocupação do solo, e de regramento da produção das edificações. A transgressão atinge a população e os empreendimentos de alta renda e também os bairros populares e a população carente. Se a minoria efetivamente cumpre as regras legais, há que se questionar se o problema se situa na população que não atende às normas, ou nas normas, que se apresentam descoladas da realidade da população. Há que se questionar se é legítima e eficaz a forma utilizada para preparação dessas regras e se é coerente a estrutura de gestão que está sendo utilizada para sua aplicação. Como têm sido elaboradas as leis? Como têm sido encaminhadas a regulamentação e a divulgação? Como têm sido organizadas as estruturas de fiscalização? Está havendo punição a quem não cumpre as determinações legais? E principalmente, nos casos em que foi possível implementar as diretrizes legais, a lei está conseguindo provocar os resultados que justificaram sua proposição?
Nas diversas esferas de governo, nos distintos níveis da administração, na Federação, nos Estados, nos municípios multiplicam-se as regras e orientações legais que supostamente deveriam ser atendidas por todos e todas. Há milênios o ser humano se preocupa com o registro, a forma de divulgação e o efetivo cumprimento das leis. Na Grécia Antiga, um dos propósitos do registro escrito das leis seria colocá-la acessível a todos. Segundo Teseu, nas Suplicantes de Eurípedes: “Quando as leis são escritas, o pobre e o rico têm justiça igual.” A expressão de que no Brasil há leis que pegam e leis que não pegam, na verdade propaga como sendo nacional uma dificuldade e um desafio que têm caráter histórico e se coloca há muitos anos e em muitos países.
Tem-se uma situação paradoxal. Ninguém pode alegar o desconhecimento da lei como justificativa para seu descumprimento. O jovem, quando aos 18 anos atinge a capacidade civil e a responsabilidade penal teoricamente deveria conhecer todo o arcabouço legal que sobre ele pesa. Porém, não é usual que os pais ensinem formalmente a legislação. Tampouco a escola se encarrega formalmente desta tarefa. Como então, o jovem, na passagem dos seus 17 para os 18 anos, toma contato com suas responsabilidades legais? O quadro se repete para os demais cidadãos- todos nós temos a obrigação de conhecer todas as leis que são diariamente publicadas no legislativo, executivo e judiciário, nas esferas federal, estadual e municipal. Pouquíssimos são aqueles que acompanham a atualização legal, feita nosdiversos Diários Oficiais. Como então o cidadão toma contato com a legislação que ele não pode desconhecer? A proposição e cumprimento das leis apresentam assim um quadro curioso: todos são obrigados a conhecer, mas não há uma estratégia efetiva de divulgação. A lei não é formalmente ensinada, dificilmente é lida na sua forma original, mas todos são obrigados a conhecer e respeitar. Alberto Moretti, parafraseando a frase de Brecht “pobre do povo que precisa de heróis”, diz que “pobre do povo cujo comportamento considerado adequado é determinado pelas leis e não cujas leis são determinadas pelo comportamento que o povo considera adequado”. A legislação é parte de um processo social e sua proposição, quando há a expectativa de que venha a ser cumprida por todos, deve levar em conta a complexidade desse processo. A simples aprovação de uma lei, por mais adequada, justa e equilibrada que possa vir a ser, de forma alguma assegura seu cumprimento. Quando se tem a perspectiva de que a lei venha a ser efetivamente aplicada, torna-se necessário um gradativo processo de envolvimento social e de produção de legitimidade e quando se analisam alguns casos bem sucedidos de leis, que apesar de levarem a uma mudança significativa de comportamento coletivo, passaram a ser efetivamente aceitas e obedecidas pelas comunidades, encontra-se, como denominador comum, um empenho na gradativa produção dessa legitimidade. Esse processo tem sido adequadamente contemplado na formulação de nossas leis de regulamentação do uso e ocupação do território?
No caso das leis urbanísticas, o detalhamento excessivo das regras, por mais que esse detalhamento encontre justificativas técnicas, vem na direção contrária ao seu efetivo cumprimento. As leis de parcelamento do solo, de zoneamento, uso e ocupação do solo, e as regras de produção das edificações, que totalizam centenas e centenas de páginas, constituem um emaranhado técnico e legal, muitas vezes de dificílimo entendimento, mesmo para especialistas. Tem havido um esforço na direção da simplificação e maior objetividade das regras legais?
De tal forma se consolidou uma postura técnica e elitista na proposição das normas legais urbanísticas, que é razoável afirmar que a possibilidade de atendimento da lei, longe de ser apenas uma obrigação, passou a ser um privilégio que apenas uma parcela da população tem condição de usufruir. Como exemplo, várias oportunidades de crédito e financiamento são viáveis apenas para os imóveis que estão plenamente regularizados, nos órgãos municipais e nos cartórios de imóveis. A regularização imobiliária pressupõe tempo, conhecimento e recursos financeiros, em doses muito dificilmente acessíveis para a maior parte da população. Ou ainda, a desapropriação, que atinge de forma bastante desequilibrada o rico e o pobre. Aquele que tem a propriedade regularmente aprovada e registrada consegue valores indenizatórios próximos ou mesmo superiores ao do mercado e aquele que possui apenas a posse do imóvel, usualmente produzido com seu esforço pessoal, é atingido de forma cruel pela desapropriação- os valores indenizatórios dificilmente possibilitam a aquisição de um novo imóvel no mesmo bairro e a baixa capacidade de resiliência às mudanças faz com que seja especialmente penosa a perda do capital social estruturado no local de moradia.
Boaventura Santos , no seu texto de 1980, que descreve a história jurídico-social de Pasárgada, já descrevia as desigualdades no acesso à justiça, tomando como exemplo esse assentamento popular, onde a população pobre, na prática não tinha acesso aos mecanismos jurídicos formais, ou seja, não conseguia acessar à polícia ou à justiça para resolução dos conflitos de vizinhança. Os moradores, apesar de contribuírem para a manutenção de toda ordem jurídica formal, viam-se obrigados a produzirem e se utilizarem de uma ordem paralela, com todos os ônus e riscos que isso significa.
Ao longo dos anos a legislação urbanística consolidou-se como definidora de regras e limitações para o uso e ocupação do solo, de caráter técnico, proselitista e elitista. As leis e planos conseguiram avançar de forma muito tímida na definição de prioridades de ação.
Não se pode dizer que a população consiga ver os planos diretores como efetivos instrumentos de expressão de sonhos coletivos ou de registro de proposta de ações prioritárias, face aos interesses da maioria da população. O avanço obtido a partir do Estatuto das Cidades, de envolvimento popular na preparação dos planos, constituiu um passo importante. Como ampliar e consolidar esse espaço? Quais são as iniciativas complementares necessárias para que a lei consiga efetivamente cumprir sua função social?

Publicado
2018-10-15
Seção
Sessão Livre