ST¨6 REPRESENTAÇÕES NÃO-HEGEMÔNICAS DO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO DE SÃO PAULO:

UM ESTUDO SOBRE AS CANÇÕES DE ADONIRAN BARBOSA E PAULO VANZOLINI.

  • Roberto Gomes Monção Junior
  • Antonio Carlos M. Guimarães

Resumo

REPRESENTAÇÕES NÃO-HEGEMÔNICAS DO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO DE SÃO PAULO: UM ESTUDO SOBRE AS CANÇÕES DE ADONIRAN BARBOSA E PAULO VANZOLINI.

Roberto Gomes Monção Junior Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional Universidade do Vale do Paraíba rgmoncao@yahoo.com.br

Antonio Carlos M. Guimarães Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional Universidade do Vale do Paraíba guimaraes@univap.br

Introdução

Partimos em nosso trabalho das contribuições de alguns autores que propõem uma abordagem do espaço em sentido mais amplo, incluindo tanto os aspectos materiais e sua organização no território, quanto os sociais e simbólicos. Neste sentido, podemos inicialmente destacar a concepção de Henri Lefebvre (1991), em que o espaço aparece definido como um “continuun” dinâmico entre a subjetividade e a objetividade”. Nesta definição, o autor vincula a materialidade do espaço à sua representação, desdobrando-a em dois níveis de abordagem: a do espaço da experiência e a do espaço da representação; este último compreendendo os modos como o espaço é apreendido, concebido, representado. Encontramos uma postura análoga em Milton Santos (1978, 1999), quando o geógrafo decompõe o espaço a partir das categorias: Estrutura, Processo, Função e Forma, consideradas em suas relações dialéticas com a história e a sociedade. Neste modelo, a Forma compreende aspecto visível e exterior que estabelece um padrão espacial; a Função, encontra-se relacionada a uma atividade ou papel; a Estrutura à natureza social, histórica e econômica de uma sociedade em determinado tempo e o Processo, que remete ao movimento, a uma ação no tempo, implicando mudança. O autor avança nesta definição ao afirmar que não podemos analisar o espaço sem considerar a totalidade dessas categorias, considerando que este “se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que se manifestam através de processos e funções” (Santos, 1978, p. 122). Um terceiro autor, Aldo Rossi (2001), ainda pode ser mencionado, no sentido de demarcar o objeto deste trabalho. Dada a pluralidade de significados associados ao termo paisagem encontrada na literatura, Rossi, vai se ater à consideração do urbano em seus aspectos arquitetônico, social, político e cultural. Desta maneira, o autor vai entender a Morfologia Urbana como resultado da intervenção não só de fatores arquitetônicos, mas também geográficos e sociológicos; obrigando ao entendimento da cidade na relação com seu contexto histórico e, como consequência, como suporte das relações dos homens em seu interior. Em síntese, Aldo Rossi condensa em sua conceituação; de um lado, o dado material da paisagem, a Morfologia Urbana, compreendendo a organização dos homens e suas atividades no território, ou seja, suas maneiras específicas de habitar; de outro, seu dado sensível, subjetivo, que converte a paisagem num repositório de sentidos e que a vincula a uma multiplicidade de leituras possíveis do visível. A esta podemos agregar o conceito de Lugar de Milton Santos (Santos,1999), que o vai entender não apenas como um quadro de referência pragmática ao mundo, mas também como cenário de manifestação do sentido e do comunicado. Milton Santos, no mesmo trabalho, aprofunda sua contribuição ao estabelecer a relação do espaço com a memória e a cultura; uma relação que adquire maior interesse quando se remete às rupturas no cotidiano. Isto aparece quando o autor propõe a figura do “homem de fora” para afirmar: “o homem de fora é portador de uma memória, espécie de consciência congelada, provinda com ele de um outro lugar. O lugar novo o obriga a um novo aprendizado e a uma nova formulação” (Santos, 1999, p. 264). Sublinhamos no texto de Milton Santos a ideia de ruptura. A princípio por ela compreender a referência a deslocamentos espaciais, uma concepção que se justifica pelo intenso movimento migratório do período; situando os migrantes a meio caminho entre o antigo e o novo meio, formando muitas vezes uma cultura híbrida (Canclini, 2011) e cujas marcas discursivas podemos encontrar, por exemplo, no português “italianado” de Adoniran Barbosa. Num outro sentido, podemos entendê-la também na transição de um ciclo da vida da cidade a outro trazido pela industrialização. Desta maneira, quando nos referenciamos às mudanças na paisagem de São Paulo e no comportamento dos paulistanos, novos e antigos, deveremos estender nossa análise e incluir elementos de ruptura na memória tanto individual, como social. Quanto à distinção entre memória individual e coletiva, Maurice Hallbwachs (1990), deixando transparecer a influência durkheminiana, vai distingui-las nas lembranças que o indivíduo porta. Define, então, a memória coletiva como composta pelas lembranças compartilhadas pelos membros do grupo; um fator de sua solidariedade e motivadas por uma experiência comum no espaço. Neste sentido, a memória se projeta nos elementos da paisagem vinculados à trajetória dos grupos; o que, de certo modo, converte a paisagem na materialização de um discurso sobre o passado. Interessa-nos particularmente o caráter social da memória. Este vai permitir que abordemos as canções como expressão de uma experiência compartilhada por indivíduos que ocupam posições subalternas na nova ordem que se institui naquele processo de urbanização. É certo que, mesmo deste ponto de vista, mantém-se uma individualidade relativa entre os compositores. Naqueles que são nosso objeto, abaixo ressaltaremos uma diferença entre eles, constituída basicamente por seu lugar social na São Paulo que se moderniza. Isto coloca Adoniran Barbosa numa posição de maior aproximação com as camadas populares e Paulo Vanzolini, numa certa liminaridade. Ao compor, de certa maneira ele se despe de sua condição social assumindo um discurso, que não é de seu grupo e que o capacita expor mazelas daquele meio a partir de uma nova perspectiva, esta frequentemente informada pela visão de mundo das camadas populares. Assim, ao incluir os aspectos subjetivos na relação do Homem com seu território, queremos justificar nossa opção por lidarmos com o que consideramos uma modalidade de discurso sobre a cidade: a canção popular. Já mencionamos Aldo Rossi (Rossi 2001), que aponta para representação da cidade em sua arquitetura e em seus monumentos. Todavia, estes são, na maioria dos casos, representantes de uma perspectiva das elites culturais e políticas e associadas ao processo de construção da hegemonia de determinados grupos (Arantes, 2006). Como, então, recuperar o ponto de vista dos subalternos sobre um processo de transformação radical da cidade, como o que São Paulo viveu a partir de meados do século passado? Neste sentido, buscamos contribuir com a discussão, trazendo o exemplo de dois compositores que de certo modo, afastam-se do ponto de vista das elites: Um deles, Adoniran Barbosa, cuja origem nas camadas populares expressa-se por marcas discursivas como na pronúncia híbrida que adota em seus sambas e na forma como percebe as mudanças no urbano paulistano. Outro, Paulo Vanzolini, médico, biólogo e professor universitário, afasta-se de suas origens, ao se dedicar a um gênero popular. O boêmio, neste caso, coloca-se numa posição liminar em relação a seu grupo de origem1, trazendo com isto, um potencial crítico para a discussão da nova face que a cidade de São Paulo adquire naquele período. Vale, então, lembrar o potencial das manifestações imateriais, diferente do patrimônio edificado, na expressão da cultura dos segmentos subalternizados da sociedade (Fonseca 2009). Não se deve confundir, contudo, a cultura viva do compositor popular com o folclore; este, em grande medida em que este vem amparar uma ideia, homogeneizadora, da Nação como comunidade imaginada (Hall, 2003). Ao contrário, os compositores que consideramos neste trabalho expõem as diferenças culturais presentes naquele contexto. Como veremos no tópico a seguir, o Brasil passa a partir de meados do século anterior um processo de passagem de economia agrário exportadora a economia industrializada. Novos atores passam a disputar a hegemonia, trazendo ao espaço urbano e à cultura as marcas de seu poder. Buscam impor um discurso de caráter modernizante e homogeneizador. Em sentido oposto, iremos encontrar parte de nossos compositores expressando em suas músicas as diferenças culturais e as mazelas do novo modelo de urbanização que, muitas vezes, assumem a forma de segregação imposta às camadas populares, com sua exclusão simbólica dos lugares.

São Paulo se Transforma: as Marcas da Industrialização na Paisagem Urbana.

No ano de 1954, São Paulo comemorou seu IV Centenário de forma emblemática com o slogan "São Paulo – a cidade que mais cresce no mundo". Este sintetizava a exaltação ao progresso e a apologia do que se propagandeava como triunfo e glória dos paulistas. Assim, a paulistaneidade foi inventada na perspectiva do progresso, do trabalho, nos signos da metrópole industrial e das chaminés. Neste discurso, passado e presente são vistos dentro de um processo cumulativo, sem que se apresentem as rupturas que aparecem naquele momento em nossa sociedade. Deste ponto de vista, os poucos metros que separam o Páteo do Colégio ou o Largo de São Bento, marcos da fundação da cidade, do Edifício Martinelli, signo de uma cidade que se moderniza, podem ser percorridos como um passeio por uma história que se constrói sem saltos. O bandeirante e o empresário, colocados lado a lado. Heroicos paulistas, representantes de etapas de um mesmo processo2. Todavia, o momento é de ruptura. Se esta não se explicita, talvez seja devido a um certo equilíbrio de forças entre os setores da economia, inclusive com a participação dos fundos gerados na comercialização do café na formação do capital industrial (Dean, 1971). Assim, até o início do século XX, o Brasil caracterizava-se como um país essencialmente rural. A partir de então, começa sua transição para a economia industrial, um processo longo que vai gradativamente alijar os fazendeiros do poder. A transição não se fará sem que busque construir um novo ideário que traduza as novas relações de força na sociedade brasileira. São Paulo, como ponto nevrálgico da mudança naquele período, serve como exemplo de como a transformação na economia vai repercutir na ação do Estado e no imaginário das elites, pondo em tela a busca por um ideário “civilizatório” que a colocasse entre as nações “modernas”. Assim, enquanto a elite rural - “atrasada” e “colonial” - agoniza, emerge uma elite “moderna”, formada por industriais e comerciantes, que vai estimular mudanças profundas na cultura e no espaço urbano, particularmente na cidade de São Paulo. Alguns novos marcos na paisagem da época são expressivos neste momento. Na centro da cidade, ergue-se o edifício sede do jornal “O Estado de São Paulo” (1951), projeto dos arquitetos Jacques Pilon e Franz Heep e uma das mais características do crescimento urbano da região central de São Paulo. Também se pode mencionar o Teatro Cultura Artística (1950), projetado por Rino Levi, que ostenta em sua fachada um mural do pintor modernista Di Cavalcanti. Em seu interior, observa-se a preocupação em atender as exigências adequadas de acústica, requisito importante para uma sala de espetáculo de uma metrópole moderna. A estes se somam, o Parque do Ibirapuera, construído para abrigar as comemorações do IV Centenário de São Paulo, o Museu de Arte de São Paulo (1947), e a primeira estação de televisão do país, a TV Tupi (1950).

As administrações Fábio Prado e Prestes Maia

Uma etapa importante em nossa reflexão refere-se à remodelação do desenho urbano de São Paulo, acompanhando a acelerada urbanização e industrialização do município. Dois prefeitos da capital paulista se destacam ao início do processo: Fábio Prado (1934-38) e Prestes Maia (1938-45; 1961-65). Seus planos de intervenção urbana, procuraram remodelar a cidade e tornaram viáveis novas áreas para a expansão urbana. Loteamentos, como os projetados pela Companhia City (os jardins Europa, Paulista, América, o bairro do Pacaembu) diferenciam-se dos que lhes antecedem, pelo seu planejamento e por se apresentarem como representativos da “moderna” maneira de viver. Prestes Maia vai assumir a Prefeitura de São Paulo pela primeira vez em 1938, durante o regime do Estado Novo. Naquele momento, a antiga estrutura viária era responsável por uma comunicação demorada e precária entre o centro e as demais regiões da cidade. Em resposta, coloca em andamento seu Plano de Avenidas, elaborado no período em que chefiava a Secretaria de Viação e Obras Públicas, entre os anos 1926 e 1930. As novas avenidas inauguradas vão permitir uma melhor circulação, preparando a cidade para uma nova fase de industrialização e apontando para expansão de sua mancha urbana. 

As mudanças introduzidas por estes prefeitos preparam a futura expansão da cidade, agora sob o ideal modernizante de uma economia que se industrializa. Assim, espaços como o Parque do Ibirapuera, importante ponto de articulação entre a área central e os bairros da Zona Sul de São Paulo, já se encontrava concebido no plano de avenidas de Prestes Maia. Seus vizinhos mais próximos, uma área nobre da cidade que compreende os bairros do Jardim América e do Jardim Europa, conectar-seiam com o Parque pela Avenida Brasil. Abrigando a arquitetura de Oscar Niemayer e o paisagismo de Roberto Burle Marx, entende-se o porquê do parque ter sido escolhido como símbolo das comemorações do 4o centenário da cidade. Seguindo no sentido bairro, vamos encontrar um outro símbolo da modernidade paulistana, o então recém inaugurado aeroporto de Congonhas, outro signo da “modernização” de São Paulo. Em síntese, São Paulo é palco de grandes transformações a partir dos anos 1930, decorrentes principalmente da industrialização. Sua área central se verticaliza. Demolições e novas construções transformam a paisagem. A administração municipal acompanha o processo com investimento em novas obras viárias. Não se trata unicamente de mudanças na paisagem física. Buscando acompanhar um estilo de vida próprio das metrópoles europeias e estadunidenses, São Paulo assiste a inauguração de equipamentos culturais destinados à sua elite: os já mencionados Teatro de Cultura Artística, MASP e a TV Tupi e naquele momento muito distantes de uma apropriação popular, o Teatro Brasileiro de Comédia (1948) e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz (1949), ambos em fins dos anos 1940, fundados pelo engenheiro italiano Franco Zampari, e buscando dar uma qualidade “internacional” à nossa produção teatral e cinematográfica. Contudo, a efervescência cultural e a emergência de um viver “moderno” que vai-se observar em São Paulo, durante o período que podemos situar entre os anos 1930 e o endurecimento do regime autoritário ao final da década de 1960, esconde tensões, provocadas pela exclusão de largas parcelas de sua população mais pobre neste processo. Estas, em grande medida, como resultado da periferização do espaço urbano perdem o centro como lugar de habitação e sociabilidade. Trata-se de um duplo movimento que a pesquisadora Maria Izilda Santos de Matos, com base em Antônio Cândido e em Raymond Williams vai descrever da seguinte maneira:

O viver moderno de São Paulo trouxe transformações culturais e nos significados das experiências, mas sem que outras formas de vivência tenham desaparecido: mantiveram-se residuais, convivendo com experiências emergentes (Williams, 1992), sendo possível reconhecer um campo em comum entre os sujeitos históricos que as vivenciavam. Estabelecia-se uma tendência, uma espécie de vetor comum homogeneizador que criava a impressão de que os elementos da modernidade predominavam de modo absoluto, contudo fatores tradicionais exerciam ações reguladoras, podendo-se dizer que não ocorria uma simples substituição de padrões, mas a redefinição dos elementos tradicionais, um ajustamento que comportava, ao mesmo tempo, resistência e/ou inconformismo (Cândido, 1982). (MATOS, 2001)

 Estas considerações obriga-nos a considerar outras perspectivas sobre o processo de modernização da cidade de São Paulo. Ao fazê-lo, o discurso de certo modo triunfalista e homogeneizador da modernidade será deslocado para dar lugar à voz dos subalternos e mesmo daqueles que, mesmo com origem na elite paulistana, assumem uma postura desviante em relação a seus pontos de vista. Neste sentido, encontramos nas canções de Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini um rico material para esta discussão, em que poderemos associar sua divergência com a representação de modernidade a partir de seu lugar social.

A Modernização aos Olhos de Adoniran Barbosa

Como se ressaltou no tópico anterior, as comemorações do quarto centenário da cidade fixou uma representação de São Paulo como cidade moderna e efervescente culturalmente, buscando equiparar-se às grandes metrópoles da Europa e Estados Unidos. Mas uma outra cidade nascia na mesma época. Esta se compunha como um mosaico multicultural, com elementos trazidos pela nova população atraída pela industrialização: migrantes nordestinos, do interior de São Paulo, imigrantes, particularmente italianos e portugueses e tantos outros que se dirigiam para a nova metrópole que se formava naquele momento. Contrastando com a imagem da cidade moderna e progressista, multiplicam-se os cortiços e, denotando a decadência do “baronato cafeeiro” muitos se instalam em seus antigos casarões. Mas, trata-se de apenas um intermezzo. Num momento posterior, com o avanço da urbanização e da consequente especulação imobiliária, aquela população será desalojada. Adoniran Barbosa sintetiza este processo em “Saudosa Maloca” (1951).  

Se o sinhô nun tá lembrado

Dá licença de contá

Que aqui onde agora está

Esse edifíço arto

Era uma casa véia

Um palacete assobradado

Foi aqui, seu moço

Que eu, Mato Grosso e o Jóca

Construímo nossa maloca

Mais, um dia

Nóis nem pode se alembrá

Veio os homes C

o’as ferramenta:

O dono mandô derrubá ...

É importante salientar que o tom não é de revolta, mas de resignação frente a um destino que parece inevitável, o que se expressa no verso, também da mesma música, “Deus dá o frio conforme o cobertor”. Por outro lado, o progresso se fazia com o trabalho. Esta concepção ganha força no período do Estado Novo, quando Getúlio Vargas convoca os compositores a substituírem a figura do malandro pela do trabalhador. Dali saem sambas como o “Bonde de São Januário” (1940) de Wilson Batista, cujo refrão: “O bonde de São Januário/leva mais um sócio otário/só eu não vou trabalhar”, foi censurado e convertido em “O bonde de São Januário / Leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar”. Mas, de qualquer maneira, a resposta ao apelo presidencial manifesta-se em versos como “Quem trabalha é quem tem razão”. A obrigação ao trabalho naqueles novos tempos vamos encontrar na música “Conselho de Mulher” (1953) de Adoniran Barbosa. Com um passado de samba e boêmia, agora casado, o personagem deveria render-se aos conselhos de sua mulher e buscar trabalho. Entretanto, busca justificar a não ocupação como vontade de Deus, que teria nos criado para sermos livres. Neste sentido, não é a malandragem, mas a vontade divina que o impede de arranjar um emprego:

(...)
Pogressio, pogressio.

Eu sempre iscuitei falar, que o pogressio vem do trabaio.

Então amanhã cedo, nóis vai trabalhar.

Quanto tempo nóis perdeu na boêmia.

Sambando noite e dia, cortando uma rama sem parar.

Agora iscuitando o conselho das mulheres.

Amanhã vou trabalhar, se deus quiser, mas deus não quer!

Pogressio, pogressio.

(…)

 

Mas o tom na obra do compositor nem sempre é de ironia. Em “Iracema” (1956), ele vai se inspirar numa notícia de atropelamento publicada em jornal. Na canção, o intérprete narra o atropelamento e morte da noiva, que não se atentou para a sinalização. Em termos metafóricos, o “progresso” que na composição anterior tolhia a liberdade, nesta ceifa vidas daqueles inaptos a se apropriar do novo ambiente. Nesta rápida abordagem à obra de Adoniran, devemos também atentar para o que é um de seus aspectos mais marcantes. Tomemos como exemplo o “Samba do Arnesto”. A linguagem que escutamos ali é produto da miscigenação do português com o italiano, além de ser fortemente marcada por outros regionalismos. Poderíamos, então, identificá-la à linguagem do “Bexiga”, bairro que se inclui entre aqueles que vão abrigar, desde o século XIX, um grande contingente de migrantes, nacionais e estrangeiros, que vão se misturar à população pobre da cidade. A língua que ali se fala é uma mistura da fala do italiano, já nacionalizado, do mulato e do branco que moram nos cortiços e nas “malocas” da região. Deste modo, esta linguagem serve para o compositor se colocar na posição de subalterno, de onde faz sua crítica à modernização da cidade, cuja realidade somente se apresenta às camadas privilegiadas da população. Ao pobre resta o “progressio”, que significa, entre outras coisas, habitar casarões convertidos em “malocas”, vê-los demolidos e buscar driblar a imperiosa necessidade de um trabalho que aprisiona o indivíduo, torcendo para que Deus não ajude. Para finalizar este rápido apanhado da obra de Adoniran Barbosa, é importante apontar a crítica à gentrificação dos espaços. Mais que uma aparente nostalgia, na canção “Praça da Sé” (1978), Adoniran vai expressar um sentimento de não pertencimento ao espaço renovado, sustentando aquilo que acima definimos como exclusão simbólica. Nesta música, ele se refere à reforma que a praça sofreu em 1972, para abrigar uma estação do metrô. Aquele era um lugar bem conhecido pelo compositor que trabalhara muitos anos na Rádio Record, bem perto dali. O caráter elitista da reforma – elitista, na medida em que é conduzido sem que se incorporasse no projeto a memória popular – é marcado na letra, quando interpela o lugar como “Madame Sé”, lamentando a mudança na paisagem:

Praça da Sé

Praça da Sé

Hoje você é

Madame estação Sé

(…)

Se hoje passa por aqui

Alguém que já faz

Algum tempo que não te vê

Pouca coisa tem que contar

Pouca coisa tem que dizer

Vai pensar que está sonhando

É natural

Nunca viu coisa igual

Noutra música, Viaduto Santa Efigênia (1965) o tema já havi aparecido em sua obra, mas através de um lamento que não se limita a ele. Ele tem uma interlocutora, Eugênia, talvez mais resistente à mudança que o próprio intérprete. Lembrando Maurice Hallbwachs (1990), que reconhece no compartilhamento de lembranças a constituição da memória coletiva, podemos enxergar ali uma ruptura não apenas do compositor, mas de todo um segmento que vê as marcas de sua memória apagadas pelo embelezamento, pelo “progressio”:

Venha ver

Venha ver, venha ver Eugênia

Como ficou bonito

O viaduto Santa Ifigênia

Eu me lembro que uma vez você me disse

Que o dia que demolissem o viaduto

Que tristeza Você usava luto

Arrumava suas mudanças

Ia embora pro interior

(…)

A recusa vem ao final da música, com os versos

Quero ficar ausente

O que os olhos não vê

O coração não sente

Neste sentido defendemos que a obra de Adoniran Barbosa não se restringe a denotar processos de exclusão socioeconômica da população pobre, do migrante naquele contexto de modernização da cidade. Ele vai além, quando retrata processos de exclusão simbólica numa sociedade onde o antigo boêmio não tem mais lugar e onde o espaço se embeleza, provocando um sentimento de não pertencimento naqueles que, antes, mantinham vínculos afetivos e de memória com eles.

A Modernização aos Olhos de Paulo Vanzolini

Paulo Emílio Vanzolini constitui um interessante contraponto a Adoniram Barbosa. A princípio por sua origem social que, diferente daquele, não ocorre em meio às camadas populares. Filho de engenheiro, formado em Medicina, com doutorado em Zoologia pela Universidade de Harvard. Contudo, apesar de sua trajetória profissional exitosa como professor e pesquisador da Universidade de São Paulo, Vanzolini não deixa de ser atraído pela boêmia e de retratar aquele cotidiano, alheio ao modo de vida das elites, em suas músicas. Sua composição “Capoeira do Arnaldo” (1967) abre-se à temática social, ao narrar a saga de um migrante que chega à cidade. Por outro lado, na linguagem utilizada vamos encontrar marcas que denotam tratar-se aquela de um produto da hibridização cultural, resultado do encontro dos universos erudito e popular. Assim, vemos a expressão “vamo-nos”, pouco frequente na canção popular e que segue a norma padrão, coexistindo com as populares “cum dois meses”; “presse”, “tropelia” ou “sabença”. Ironicamente, como era de seu feitio, novamente o encontro dos universos vai acontecer no “Samba Erudito”, composto em 1967. Ali, referências universalizadas pela cultura dominante são utilizadas na forma de uma declaração de amor, na verdade de desistência, de um homem que vê frustradas suas tentativas de conquista amorosa: 

(...)
Fiz uma poesia Como Olavo Bilac

Soltei filipeta Pra ter dar um

Cadillac Mas você nem ligou

Para tanta proeza

Põe um preço tão alto

Na sua beleza

E então, como Churchill

Eu tentei outra vez

Você foi demais

Pra paciência do inglês

Aí, me curvei

Ante a força dos fatos

Lavei minhas mãos

Como Pôncio Pilatos


(...)

O que vale ressaltar em Paulo Vanzolini é o fato do compositor dar visibilidade àqueles que a representação da modernidade de São Paulo excluiu da paisagem. Isto é feito em sambas, uma forma popular de expressão, incluindo por vezes expressões que escapam à norma padrão da língua portuguesa. A paisagem e eventos que servem de pano de fundo às suas músicas (os bares da Avenida São João, com suas cenas de sangue, a carteira batida na Praça Clóvis), mesmo que o foco esteja nos sentimentos individuais, vem desmentir as promessas da modernidade, trazendo à tona um universo popular marcado pelas dificuldades e violência. Isto ele vai conseguir, quando se coloca fora de seu papel social de professor universitário e fora de seu status, que não deixa de ser o de membro de uma elite sociocultural da cidade. No campo da produção artística ele vai ocupar uma posição que acima identificamos como de liminaridade, ou seja, colocando-se fora da estrutura social, este compositor pode perceber e retratar as tensões envolvidas no processo de modernização da capital paulista (Turner, 1974). Para concluir este tópico, vale mencionar o “Samba do Suicídio” (1967), também de sua autoria, traçando um paralelo com uma afirmação de Walter Benjamin. O filósofo alemão aponta tal desproporção entre as forças da modernidade e as do indivíduo que a este só lhe resta muitas vezes a alternativa do suicídio. É certo que, no trabalho de Benjamin, o suicídio apresenta-se como ato heroico, uma recusa do indivíduo às poderosas forças que se opõem a seu élan produtivo (Benjamin, 2000). No samba de Vanzolini, é o homem comum que decide se matar, pressionado por problemas corriqueiros e inspirado por uma notícia de jornal. Contudo, nem neste ato extremo ele vai obter sucesso; um fracasso que se explica pelas duras condições de vida das camadas populares. Seguindo a leitura da notícia no jornal, resolve se suicidar, atirando-se de um viaduto; este também símbolo da modernidade, que vai contrastar com a cama de jornal, que remete à ideia de miséria. Contudo, a desnutrição o faz flutuar quando se joga do viaduto:

Um dia abatido pegando jornal

Pra me servir de colchão

Ao estendê-lo no chão

Li uma notícia que confirmou a minha opinião

Estava dura e nana 18 suicídios naquela semana

Com a notícia assim lida

Encontrei a saída

Do problema e da vida

Sem perda de um minuto

Subi no viaduto

E atirei-me no espaço

Meu D'us mas que fracasso

Eu estava tão consumido

Que um ventinho distraído

Que estava a soprar

Foi me levando pelo ar

(...)

Também pela baixa qualidade e falsificação da bebida consumida no botequim faz frustrar seus planos:

(...)
Voltei ao problema

Por outro sistema

E tomei formicida

E tive a maior surpresa de minha vida

Descobrindo assim

Que o que andavam servindo

Aqui no botequim

Não era tatuzinho Chá de briga

Era tatu mesmo

O fazedor de orse de formiga

Me deu um frio na barriga

E um calor no duodeno

Aí fiz a pele do galego

Que é pra largar mão de veneno

(...)

Neste momento é o transporte de massas, sempre em condições precárias que impede a realização de seus intentos: 

Penso então que o que mais me convém

É ficar embaixo do trem

Que assim é certo eu entrar bem

Sem pensar mais Eu corri para o Brás

E joguei a carcaça embaixo de Maria fumaça de 28 vagões

E nestas condições

O resultado foi fatal

Vejam a notícia no jornal

Pavoroso descarrilhamento na central

Deu tanto morto e estrupiado

Que eu fiquei meio chateado

A música ainda prossegue, falando do “corpo fechado”, que lhe impede de “estourar os miolos”. Vale sublinhar nesta composição que, mesmo atento a um drama individual é a experiência de larga parcela da população que vai conduzir a fala exposta. Neste caso, o ato extremo de se matar, metaforicamente falando, poderia representar o grau máximo de um sentimento de exclusão de um mundo, onde aquele indivíduo já não cabe; algo que já se expressa no início do samba:

Que eu andei mal não é segredo

Duro como um rochedo

E jogando sem sorte

Poeta de morte no esporte

E no amor sempre mau sucedido

Considerações Finais

A principal lição que extraímos da realização deste trabalho refere-se ao potencial da música popular de apontar para visões não hegemônicas dos processos de urbanização. É certo que alguns compositores podem se render ao dominante; como Wilson Batista no “Bonde de São Januário”, que responde aos apelos de Getúlio Vargas. Outros, como no caso dos que foram examinados aqui, seguem uma trilha oposta, confrontando interpretações que se buscam oficializar. A industrialização e urbanização no Brasil ganha força após a ruptura com a ordem institucional, a revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas. Inaugura-se, então, um longo processo em que São Paulo vai se construir como uma metrópole moderna, importando estilos de vida e modelos de urbanização de cidades europeias e estadunidenses. São dois prefeitos, sem partido e nomeados pelo interventor federal em São Paulo, que vão dar início às mudanças radicais no espaço urbano, adequando-o àquela etapa de desenvolvimento da cidade. A seus mandatos se segue ainda um longo período de efervescência cultural no teatro, cinema, arquitetura, artes plásticas. O que vai se perceber neste processo é a construção de uma imagem de modernidade do país que esconde suas mazelas sociais; muito embora se manifestem vozes discordantes que só vão ganhar ao final do regime militar. Destacamos aqui dois compositores, Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini, que integram o coro dos contrários. Falam muitas vezes em nome de um tempo perdido, mesclando sentimentos individuais à memória daqueles que veem desaparecer de seus antigos espaços de sociabilidade. Trazem à tona as contradições de um processo de modernização que exclui parcelas expressivas da população. A exclusão não é apenas socioeconômica, mas também simbólica, daí o sentimento de não pertencimento ao se passar por uma praça, antes lugar de sociabilidade, que hoje perde esta característica ao ser “revitalizada” e enobrecida. Vale ressaltar a posição de liminaridade destes compositores. Um, porque representa um grupo que gradativamente vai perdendo seu lugar no cenário cultural brasileiro. Aquele representado na figura do boêmio, do malandro, mas também do migrante, cuja fala desafia as regras do “bom falar”. Outro, embora membro da elite, vai se ligar ao popular, apropriando-se de sua cultura e retratando seu universo. Assim, colocando-se fora das estruturas sociais, afastando-se das representação de modernidade que se busca oficializar, eles portam um discurso contra hegemônico, trazendo uma perspectiva nova à discussão das políticas urbanas. 

Referências Bibliográficas

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Publicado
2019-05-23
Seção
Sessões Temáticas