SL66 De Humpty Dumpty a Henri Lefebvre:

subvertendo práticas, o cotidiano, revolucionando o futuro.

  • Ester Limonad
  • Geraldo Magela Costa
  • Roberto Luís Monte-Mór
  • Ana Fani Alessandri Carlos
  • Rainer Randolph

Resumo

SL-66. De Humpty Dumpty a Henri Lefebvre: subvertendo práticas, o cotidiano, revolucionando o futuro.

Coordenadora: Ester Limonad (UFF)

Resumo:

“Quem você passou na estrada?” prosseguiu o Rei (…)

“Ninguém” disse o Mensageiro.

“Correto”, disse o Rei: “esta jovem também o viu.

Portanto Ninguém anda mais devagar que você.”

“Faço o meu melhor “ disse o Mensageiro em um tom irritado.

“Estou certo que ninguém anda mais rápido do que eu!”

“Ele não pode” disse o Rei, “ou ele estaria aqui primeiro.” (1)

A obra de Charles Dogdson, conhecido como Lewis Carroll, é plena de silogismos que rompem com a lógica formal, subvertem a linguagem, mudam o sentido das palavras e das frases, fazendo com que estas adquiram diferentes significações conforme o contexto. Dodgson deixa clara sua intenção na seguinte passagem

"Quando uso uma palavra", disse Humpty Dumpty, em tom de desdém, "ela significa o que eu quiser que ela signifique, nem mais nem menos."

"A questão é", disse Alice, "se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes."

"A questão é", disse Humpty Dumpty, "qual comanda, isso é tudo." (2)

Este breve diálogo entre Humpty Dumpty e Alice além de ilustrar as possibilidades de subversão da linguagem, explicita a possibilidade do sujeito em se apropriar das palavras e definir o seu significado, ao invés de se subordinar ao significado da linguagem.

Lefebvre (2013) chama a atenção para a importância da linguagem e questiona se um termo existe antes da coisa ou se a coisa existe antes de receber uma designação. Seguindo seu raciocínio caberia também a possibilidade da designação de uma coisa ser apropriada socialmente, ainda, para um outro fim ou para outra coisa. Registra, ainda, lembrando Nietzsche, que:

“ (...) as palavras, enquanto palavras, constituem por si só metáforas e metonímias (...). Vão além do imediato, do sensível (...) As palavras da linguagem são simplesmente metáforas das coisas (...) Em termos modernos, a língua é mais importante que a linguagem (...) a língua e a palavra inventam, restituem a vida a signos e conceitos” (Lefebvre 2013:190).

“A transformação social demanda a reconstrução de línguas e linguagens, pela e na prática espacial” (Lefebvre 2013: 443).

Lefebvre destaca que se opõem assim primeiras impressões e concepções racionais. Nesse contexto o conceito de espaço ligado a uma prática social condensa em si sentidos e significados diversos, de tempos distintos, que vai muito além da semiologia das palavras, da linguagem e de seu sentido simbólico.

Assim, ao discutir o espaço, Lefebvre principia por uma abordagem crítica das concepções de espaço ligadas às visões convencionais, clássicas dos diversos campos do conhecimento para subvertê-las, superar seu fetichismo, a ilusão da transparência, se apropriar do termo e nos oferecer a proposição de que “o espaço é politico. O espaço não é um objeto cientifico apartado da ideologia e da política; ele sempre foi politico e estratégico” (Lefebvre, 1972). E, mais tarde, assinala “o espaço (social) é um produto (social)” (Lefebvre, 2013).

Destarte alerta para a importância das práticas sociais para a produção do espaço social no cotidiano e, ao abordar o espaço arquitetônico, aponta para a materialização e concretização das práticas sociais no espaço, que se superpõem e mesclam ao longo da história. Ou seja, nessa perspectiva, a produção de um novo espaço, de um espaço diferencial não ocorreria abruptamente, pois requer mudanças nas práticas sociais, no modo de vida, nas relações sociais, nas relações que a sociedade estabelece com o meio em que vive para se (re)produzir.

Se o socialismo real falhou em produzir um outro espaço, um espaço diferencial (Lefebvre, 2013), as lutas sociais pelos direitos dos trabalhadores, pelos direitos civis das mulheres, dos negros e das minorias, lutas vistas como de menor importância política, desencadeadas no século XX, conseguiram ir muito além de seus objetivos iniciais, consolidaram conquistas, abriram a possibilidade de outras formas de participação política e apontaram para a superação de questões aparentemente banais, negligenciadas por muito tempo. (Amin & Thrift, 2013)

O espaço se converte em um desafio a essas lutas, a seus avanços sem abolir outros elementos do jogo político (Lefebvre, 2013). A produção de um espaço diferencial e a superação do espaço abstrato do capital requerem outras práticas espaciais, outros espaços de representação, que devem contemplar a diferença, a heterogeneidade dos grupos sociais que produzem, povoam e consomem o espaço social, que desafiam através de táticas e práticas alternativas o espaço abstrato do capital, sobrepondo o valor de uso ao valor de troca, a apropriação à dominação social do espaço, ainda que por vezes efêmera, rompendo com os ritmos impostos pelo capital.

Enfim, criar, produzir um espaço diferencial demanda nem uma socialização dos bens de produção, nem uma mudança do Estado, mas sim uma metamorfose da vida cotidiana, das práticas espaciais e sociais, demanda mudanças de valores. “A transformação da sociedade supõe a posse e a gestão coletiva do espaço” (Lefebvre, 2013: 450-1) e demanda a participação constante dos interessados, através de diferentes práticas de diversos grupos sociais com interesses contraditórios.

Por conseguinte, a proposta dessa sessão livre é reunir reflexões sobre práticas espaciais alternativas norteadas pela subversão do instituído, pela produção de um outro espaço e de uma outra sociedade mais equânime.

Amin, A. & Thrift, N. 2013. Arts of the Political: New openings for the Left, Durham, Duke University.

Carroll, L. 1976 (1871). “Through the Looking Glass and What Alice Found There”, in The Complete Works of Lewis Carroll, London, Vintage Books.

Lefebvre, H. 1972. Espacio y política, Barcelona, Peninsula.

Lefebvre, H. 2013. La producción del espacio, Madrid, Captain Swing. Notas:

(1) ‘Who did you pass on the road?’ the King went on (...)

‘Nobody,’ said the Messenger.

‘Quite right,’ said the King: ‘this young lady saw him too. So of course Nobody walks slower than you.’

‘I do my best,’ the Messenger said in a sulky tone.

‘I’m sure nobody walks much faster than I do!’

‘He can’t do that,’ said the King, ‘or else he’d have been here first.’ (Carroll, 1976, Chapter 7).

(2) ‘When I use a word,’ Humpty Dumpty said, in a rather scornful tone, ‘it means just what I choose it to mean, neither more nor less.’

‘The question is,’ said Alice, ‘whether you can make words mean so many different things.’

‘The question is,’ said Humpty Dumpty, ‘which is to be master that’s all.’ (Carroll 1976, Chapter 6).

Exposição: Subversões e alternativas de apropriação do espaço social no cotidiano

Expositora: Ester Limonad (UFF)

Resumo: Para Henri Lefebvre (2013) o imaginário coletivo, os espaços de representação carregariam em si as sementes da transformação, enquanto uma esfera não codificável, enquanto reino do incógnito, do subversivo. Esses espaços de representação podem ser entendidos como parte integrante das práticas espaciais nãohegemônicas, e enquanto tal, contribuem para outras formas de apropriação do espaço social, conformando diferentes espacialidades e a possibilidade de outras práticas. O novo, o inédito de alguma maneira sempre busca romper com convenções, normas e ordens pré- estabelecidas, criar novas linguagens, sintaxes e léxicos. E, talvez essa seja a maior dificuldade a ser vencida na construção de uma outra sociedade, qual seja a dificuldade de se criar novas linguagens, léxicos e formas de representação das coisas, dos seres, mas também de representação do espaço, de expressão do imaginário, de uma outra sociedade. Formas essas, entendidas, aqui, como potencialidades de transformação das práticas espaciais, enfim do cotidiano. Transformações essas que dialeticamente ocorrem no cotidiano e o transformam enquanto tal, que contribuem para subverter, pouco a pouco, e superar práticas e visões arraigadas e para uma outra práxis. O que demanda a compreensão do cotidiano, não apenas enquanto lugar da cotidianidade, mas como um espaço político privilegiado da reprodução e da transformação social.

Exposição: Sobre as limitações da teoria, do método e da linguagem na análise do espaço urbano

Expositor: Geraldo Magela Costa (UFMG)

Resumo: Milton Santos (1994) escreveu um pequeno texto – “O retorno do território” – ao qual sempre retorno em minhas atividades de professor e de pesquisador. Em uma passagem deste texto o autor ao nos falar sobre o lugar como a sede de uma possível resistência da sociedade civil nos remete às questões da linguagem e da metáfora no processo de análise e conhecimento da realidade: “Antes, é essencial rever a realidade de dentro, isto é, interrogar a sua própria constituição neste momento histórico. O discurso e a metáfora, isto é, a literaturização do conhecimento, podem vir depois, devem vir depois”. Lefebvre, em “A revolução urbana”, também nos fala sobre tais questões quando reflete sobre “o campo cego”. Ele se pergunta: “entre o industrial e o urbano, o que há?”, e responde: “Capas verbais, “significantes flutuantes” soltos, cujo significado (a indústria, racionalidade e prática) não é mais suficiente, ainda que permaneça necessário. [...] Pode-se observá-las como se contempla, do avião, as camadas e capas de nuvens. Eis aqui, muito alto, muito leves, os cirros da antiga filosofia. E os nimbos da racionalidade. E os pesados cúmulos dos cientificismos. Todos linguagens ou metalinguagens a meio caminho entre o real e o fictício, entre o realizado e o possível”. Procurarei me inspirar nestes dois autores, especialmente Lefebvre, para refletir sobre as limitações da teoria, do método e da linguagem no processo de análise para conhecer e transformar a realidade urbana. A aproximação com a prática é certamente uma condição necessária para isto.

Exposição: Reinventar o urbano a partir da transformação do cotidiano, por outra práxis socioambiental

Expositor: Roberto Luís Monte-Mór (UFMG)

Resumo: O avanço do espaço abstrato, através dos processos de globalização e suas manifestações várias nas práticas espaciais e na vida cotidiana, atinge hoje virtualmente todos os territórios e comunidades do mundo contemporâneo. A colonização dos espaços de vida pelas lógicas emanadas dos centros geradores dessa globalização do capital - grandes áreas metropolitanas industriais e suas redes que comandam territórios integrados pela produção e pelo consumo - caminha para substituir o mundo concreto pelo mundo abstrato, os objetos por mercadorias, terras e pessoas por abstrações comandadas pela lógica da acumulação capitalista. A economia de mercado ameaça instaurar hegemonicamente a sociedade de mercado - mesmo onde ainda não penetrou integralmente, como em países como o Brasil. De outra parte, a valorização crescente da natureza, das práticas tradicionais e o resgate de outras racionalidades para além (e aquém) da velha modernidade cristalizada do século passado sugerem múltiplas possibilidades para reinvenções da vida cotidiana, de seus espaços e de novas organizações sociopolíticas e culturais que recoloquem a economia no seu devido lugar, como meio, e não como fim em si mesma, redefinindo-a a serviço dos espaços de vida. Esse texto pretende discutir o conceito de urbano para além da dimensão urbanoindustrial e explorar suas possibilidades de reinvenção com base na vida cotidiana e na redefinição de formas de integração sócio-espacial e econômica, muitas já presentes na organização das comunidades e territórios no Brasil urbano-rural contemporâneo.

Exposição: O homem será cotidiano ou não será

Expositora: Ana Fani Alessandri Carlos (USP)

Resumo: À questão aonde se localizam as resistências orientadas pela esperança de uma "outra vida" (através da construção de um outro mundo possível), a resposta de Lefebvre: é no cotidiano. No plano do cotidiano, concretamente, se realizam as opressões que assediam a vida urbana regularizando, ordenando, direcionando as ações aonde a prática socioespacial evidencia as formas de controle realizadas através e pelo espaço. Mas nos interstícios da exploração do trabalho, da deterioração das condições de vida, na ausência do direto, nas situações de exclusão de uma realidade mercantil (que molda comportamentos pela abstração concreta que o mundo da mercadoria impõe) se localizam os resíduos. Encontra-se a virtualidade, entrevista, esboçada alimentando a critica do projeto político-econômico que se efetiva contra o social. As manifestações vividas no Brasil em junho de 2013 demonstram que nos espaçostempos de realização do cotidiano no seio do urbano, se gesta a consciência do arbitrário, das falsas necessidades produzidas pela abundância que escapa da maioria, da opressão e a normatização - apontando o urbano como o lugar da luta e o devir pertencendo ao humano.

Exposição: La planification est mort, vive la planification: das práticas do planejamento ao planejamento como práxis

Expositor: Rainer Randolph (UFRJ)

Resumo: Como conclusão de uma longa reflexão recente sobre o planejamento chego ao resultado que não faria sentido querer “melhorá-lo” com novas formas, tipos ou modalidades. Mesmo um planejamento subversivo só faria sentido se toda essa trajetória fosse “subvertida” a favor de um procedimento como aquele que Lefebvre anunciou quando supera a filosofia através de uma “meta-filosofia” que implica em nenhuma transcendência da realidade, mas na “práxis”. É nela – e na sua poiesis – que há uma força criativa; e não na formalidade dos modelos e das representações que meramente reproduzem velhos esquemas – como mimesis. Uma superação – um meta-planejamento - não pode resultar em novos discursos, nem novos conceitos e, menos ainda, em novas práticas do planejamento. São essas “práticas” que precisam ser superadas (dialeticamente) como “práxis” na medida em que estão inseridas – e também são resultado dessa inserção – numa totalidade triádica da qual fazem parte: a produção do espaço (social). Esse (meta/não) planejamento, caso se proponha a ser subversivo, nem se revelaria em sua compreensão do espaço social, em primeiro lugar, enquanto contraposição à representação dominante do espaço, mas tem suas maiores conquistas nos espaços de representação daqueles que se envolvem nele direta ou indiretamente – o que se denota na medida em que essas práticas espaciais surgem de sua práxis. Essa argumentação será aprofundada e aperfeiçoada através da explicitação maior do conceito “práxis” desde sua compreensão pelo materialismo dialético (Marx) até as abordagens sobre a “filosofia da práxis” (Sánchez Vázquez e outros).

Publicado
2019-05-22
Seção
Sessão Livre