SL63 Planejamento em saúde:

da crítica ao "modelo biomédico" ao lugar como realização do possível

  • Raul Borges Guimarães
  • Ricardo Mendes Antas Júnior
  • Raphael Curioso
  • Luciana da Costa Feitosa
Palavras-chave: planejamento em saúde, modelo biomédico

Resumo

SL-63. Planejamento em saúde: da crítica ao "modelo biomédico" ao lugar como realização do possível

Coordenador: Raul Borges Guimarães (UNESP-PP)

Resumo:

A presente Sessão Livre tem por objetivo discutir a relação entre o conceito ampliado de saúde – formulado desde 1986 pela VIII Conferência Nacional de Saúde e preconizado em princípios constitucionais na Carta Magna de 1988 –, a política do Sistema Único de Saúde e o planejamento territorial – entendido como base para integração e articulação de políticas públicas. Essa relação pressupõe pensar a saúde para além do modelo biomédico, detentor da hegemonia no que diz respeito às ações e estratégias das políticas de saúde no Brasil, e considerá-la sob o ponto de vista geográfico, tendo o lugar – e seu componente material - como espaço do acontecer solidário (Santos, 1996) e dimensão da existência do homem em seu cotidiano.

De acordo com a definição da VIII Conferência Nacional de Saúde, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. Sendo assim, é principalmente resultado das formas de organização social, de produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. (Brasil, 1986). Como reflexo do movimento de redemocratização do país, tal formulação contrapunha a força de lideranças sanitaristas compromissadas com as mudanças políticas ao modelo biomédico, uma vez que procurava romper com a concepção assistencial, centrada na doença, no saber médico e na tecnologia hospitalar. Foram estas forças progressistas que prevaleceram na redação dos artigos de 196 a 200 da Constituição de 1988, estabelecendo-se como princípios e diretrizes para um novo e único sistema de saúde a universalidade, a integralidade, a equidade, a descentralização, a regionalização e a participação social.

Contudo, as ações resultantes das políticas do Sistema Único de Saúde (SUS), após 20 anos de sua implementação, revelam um modus operandi cujo foco, seja através de ações preventivas ou curativas, ainda é a vida biológica do homem, mantendo-se o modelo biomédico como núcleo estratégico e metodológico das ações. Informações externas a este modelo de pensamento aparecem de forma apenas residual. Para isto, a política de informação em saúde foi fundamental, uma vez que foi desenvolvida baseada na informática médica, assim como a política de regionalização do SUS prevê uma organização hospitalocêntrica dos serviços de saúde. Tais características padronizam a ação do sistema no país através de normas, portarias e decretos, deixando em segundo plano as complexas singularidades de cada lugar e, portanto, as complexas demandas por saúde.

Embora o artigo 36° da Lei Orgânica da Saúde estabeleça que “[o] processo de planejamento e orçamento do Sistema Único de Saúde (SUS) será ascendente, do nível local até o federal [...]” (Brasil, 1990), o que se verificou desde o início da implementação da política do SUS no Brasil foi um direcionamento normativo vertical dos procedimentos de gestão e planejamento, não considerando as singularidades dos lugares, o que resulta num “discurso deslocado, fora do lugar em que foi produzido” (Guimarães, 2000, p. 59).

Esse caráter vertical e setorial da política gera enfoques fragmentados e limitados, constituindo-se num tipo de “antiplanejamento territorial”. Dessa forma, cria-se um vácuo dentro do processo de articulação e integração dos níveis de atenção do sistema, sobretudo da Atenção Primária – tida como “porta de entrada” do SUS – com a realidade e dinâmica territorial do país.

O “componente territorial” do planejamento na saúde é visto ainda como “área geográfica de abrangência da unidade de saúde” (Giovanella e Mendonça, 2008, p. 584), não considerando as formas – que são a materialidade, o tempo cristalizado (Antas Jr, 2005) – como condicionantes das ações humanas, que não respeitam necessariamente os limites impostos pela “área de abrangência”. Ao tratar o território como uma porção autônoma, a política de saúde faz uma regulação grosseira do sistema, já que o tipo de investigação elaborada e informação coletada não são fidedignos à realidade dos lugares.

Portanto, a reflexão e análise crítica do modelo atual de informação existente no Sistema Único de Saúde se fazem necessárias. Afinal, o monopólio epistemológico (e ontológico) por parte do modelo biomédico expropria das populações a possibilidade delas compreenderem a saúde vinculada a um processo de autonomia (Illich, 1975), noção que indicaria a impossibilidade de uma determinação padrão e rígida para o que é normal e o que é patológico (Canguilhem, 2009).

Logo, propõe-se um horizonte teórico sobre saúde que se pauta num projeto que visa pôr como centro das políticas os lugares, compreendendo-os como a dimensão espacial do cotidiano (Santos, 1996), revelando-se lócus “onde se despregam forças sociais antagonistas, lutas em jogo, regulação dos conflitos” (Tedesco, 2003, p. 147). Isso exige a adoção de estratégias transescalares (Vainer, 2001) como recurso metodológico para a análise dos processos que configuram a vida de relações entre os habitantes do lugar e as ações da política de saúde em suas diversas esferas de atuação, pois “qualquer projeto (estratégia) de transformação envolve, engaja e exige táticas em cada uma das escalas em que hoje se configuram os processos sociais, econômicos e políticos” (Vainer, 2001, p. 147).

As formas geográficas, que têm na materialidade o seu principal componente, são para nós um pressuposto metodológico que pode melhor subsidiar o planejamento do SUS na perspectiva do lugar. Com isso acreditamos na possibilidade de enriquecimento das práticas territoriais da saúde no Brasil – nas quais as formas geográficas dos lugares onde os cidadãos realmente vivem sejam consideradas - na tentativa de se produzir informações inversas às que são disponíveis atualmente, onde são mascaradas as verdadeiras condições dos lugares nos “territórios” delimitados pelas “áreas de abrangência” da política de saúde.

Incorporar uma compreensão holística de saúde, relacionando-a com uma visão totalizante do mundo e do lugar, é condição sine qua non para pensar o SUS a partir do planejamento territorial e, portanto, retomar os rumos da reforma sanitária brasileira. Esse movimento de raciocínio implica num questionamento das próprias bases que significam a ação de saúde no Brasil como, por exemplo, as atividades de pesquisa e informação em saúde, o papel do hospital e da divisão médica do trabalho – tendo o complexo industrial da saúde como sua principal evidência -, o papel do agente comunitário de saúde, as bases do entendimento do que é lugar, região e território para a saúde pública, e assim por diante. Acreditamos que as ciências humanas e, neste caso, a geografia, guardam em si a possibilidade de travar um diálogo rico e edificante a respeito desses novos entendimentos.

Referências Bibliográficas:

Antas Jr., R. M. 2005. Território e Regulação: espaço geográfico, fonte material e não formal do direito, São Paulo, Associação Editorial Humanitas.

Brasil. 1986. 8° Conferência Nacional de Saúde: relatório final. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/relatorios/relatorio_8.pdf. [acesso: 07 de dezembro de 2014]

Brasil. 1990. Lei Orgânica da Saúde. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. [acesso: 07 de dezembro de 2014].

Canguilhem, G. 2009. O Normal e o Patológico, Rio de Janeiro, Forense Universitária.

Giovanella, L. Mendonça, M. H. M. 2008. Políticas e Sistema de Saúde No Brasil, Rio de Janeiro, Fiocruz.

Guimarães, R.B. 2000. Saúde Pública e Política Urbana: memória e imaginário social, São Paulo, Tese de Doutorado – USP.

Illich, I. 1975. A expropriação da saúde: Nêmeses da Medicina, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

Santos, M. 1996. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção, São Paulo, Hucitec.

Tedesco, J.C. 2003. Paradigmas do Cotidiano, Passo Fundo, EDUNISC.

Exposição: Geografia da saúde: categorias e conceitos

Expositor: Raul Borges Guimarães (UNESP-PP)

Resumo: Nos últimos 20 anos, a implementação do Sistema Único de Saúde no Brasil exigiu do poder público desafios constantes para o estabelecimento de desobstrução da comunicação e do intercâmbio de informações entre as unidades de serviços de saúde, visando o atendimento das necessidades da população. Mas é sabido que uma parcela considerável dessas necessidades nunca será plenamente satisfeita no plano da assistência médica individual. Afinal, é do lugar onde as pessoas vivem que emanam tais demandas através de um processo que não é harmonioso, mas repleto de conflitos e resistências. Assim, o conceito de saúde está intimamente relacionado aos contextos socioculturais e aos significados que cada indivíduo atribui ao seu processo de viver. Como pressuposto deste conceito, temos como suporte alguns aspectos espaciais fundamentais que determinam o seu conteúdo. Ou seja, para compreender o conceito de saúde é preciso relacioná-lo às categorias geográficas que o conformam (como ordem, conectividade e extensão) numa abordagem multidimensional. Neste sentido, o território delimitado pela área de abrangência adstrita aos serviços de saúde não é suficiente para a compreensão da saúde coletiva do ponto de vista dos sujeitos coletivos, cabendo atenção e cuidado na interpretação das relações entre o discurso oficial e a prática social. Assim, uma forma de discutir o conceito de saúde a partir do conhecimento geográfico seria por meio do uso e apropriação do território por inúmeros agentes sociais, uma vez que esta perspectiva revela o descompasso entre a realidade como ela é nos lugares e as estratégias territoriais desses diferentes agentes.

Exposição: O complexo industrial da saúde e os circuitos espaciais produtivos no território brasileiro

Expositor: Ricardo Mendes Antas Júnior (USP)

Resumo: Há hoje no território brasileiro a formação consolidada de um complexo inseparável entre a oferta dos serviços de saúde e uma produção industrial especializada em diferentes insumos para clínicas e hospitais. Essa produção industrial requer tanto a produção de conhecimento aplicado quanto a pesquisa stricto sensu; instituições públicas e privadas no estabelecimento dos elos entre os agentes produtivos, assim como para as regulações setoriais; e requer uma logística flexível e sofisticada que transporte produtos muito sensíveis ao deslocamento e aos mais diferentes tipos de ambiente. As grandes corporações transnacionais das áreas de química fina, eletrônica, biomedicina e fármacos fornecem produtos semimanufaturados para as indústrias especializadas de porte nacional, embora também atuem em fornecimentos diretos de produtos acabados segundo demandas de mercado regionais de grande poder aquisitivo. Essa variedade de agentes em cooperação, que produzem uma complexa divisão territorial do trabalho, nos permite afirmar a existência de determinados circuitos espaciais produtivos da saúde no território brasileiro. É importante ressaltar que o Estado aparece como um círculo de cooperação no espaço fundamental para a consolidação desses circuitos espaciais já que, por meio do Sistema Único de Saúde, garante uma demanda firme para todos os agentes produtivos implicados na produção industrial. Outros círculos de cooperação importantes na formação dos circuitos são os sindicatos empresariais, movimentos sociais de interesse específico em saúde e variadas ONGs. Outro ponto a se destacar é que esse complexo industrial da saúde concentra-se em algumas grandes cidades do Estado de São Paulo, mas está presente em outros entes federativos.

Exposição: A política de informação da atenção básica: evidências de um planejamento "antiterritorial"

Expositor: Raphael Curioso (UNICAMP)

Resumo: A presente exposição tem como objetivo evidenciar o modus operandi da política de informação em saúde na atenção básica do SUS. Esta política tem como núcleo o pensamento clínico sendo, portanto, fundamental para a manutenção de um típico planejamento em saúde hospitalocêntrico, que não prevê em suas ações uma visão ampla sobre a saúde como aquela estabelecida pela constituição brasileira no contexto da reforma sanitária. Nossa pesquisa analisou os dois principais sistemas de informação em funcionamento na atenção básica do SUS – o Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) e o e-SUS – onde foi constatada a produção de um tipo de informação que privilegia as ações de saúde de cunho clínico. Além disso, caracterizamos tal política como produtora de um círculo descendente de informação, que tem no ministério da saúde o núcleo técnico e metodológico para o estabelecimento de uma rede de informação em saúde. Estas evidências desoneram do lugar – no âmbito da atenção básica – suas capacidades em compreender e propor soluções específicas para os problemas de saúde, transformando-o em um mero depósito de dados, antessala do hospital e simples braço operacional das atividades de informação em saúde propostas pelo ministério da saúde. Neste sentido, torna-se necessário estabelecer nossos parâmetros para pensar a atividade informacional do SUS, a partir de uma compreensão metodológica em que a informação seja produzida de forma ascendente, com os lugares no epicentro político e metodológico de tais ações.

Exposição: A regionalização como estratégia de organização do Sistema Único de Saúde: limites e possibilidades

Expositora: Luciana da Costa Feitosa (UNESP-PP)

Resumo: A regionalização enquanto estratégia de planejamento na política de saúde foi tida como eixo estruturante desde a Constituição Federal de 1988, quando ficou decidido no artigo 198 que as ações e serviços de saúde compõem uma rede regionalizada e hierarquizada. No entanto, o que se verificou desde a implementação do SUS foi um privilégio à autonomia municipal na gestão dos serviços de saúde, sobretudo a partir do dispositivo das normas operacionais básicas. Para combater esse descompasso, desde 2001 o Ministério da Saúde vem lançando um conjunto de atos normativos que buscam devolver à região e à regionalização os papéis de protagonistas no planejamento do sistema. Sendo assim, esta exposição tem como objetivo analisar a concepção teórica de região apropriada pelo SUS e a sua operacionalização, por meio da regionalização, nos diferentes lugares, uma vez que partimos do princípio de que, para serem resolutivas, as regiões de saúde devam ser instituídas a partir da coerência funcional entre os lugares, o que supõe considerar as condições garantidas de acessibilidade geográfica aos serviços de saúde. Logo, consideramos que existem incongruências teórico-metodológicas entre o discurso (elaboração dos planos e projetos) e a realidade (dinâmica territorial e ferramentas de operacionalização da gestão no sistema). Daí a necessidade de se adotar uma análise territorial do fenômeno que tenha articulação com as diferentes escalas, uma vez que cada uma delas evidencia um conteúdo próprio do espaço enfocado e implica alteração, tanto na proporção de determinado fenômeno, como também em sua natureza.

Publicado
2019-05-22
Seção
Sessão Livre