SL16 Direito(s) e espaço(s):
regulação espacial e geografização do direito no conflito entre a cidade do lucro e a cidade das pessoas
Resumo
SL-16. Direito(s) e espaço(s): regulação espacial e geografização do direito no conflito entre a cidade do lucro e a cidade das pessoas
Coordenadores: Rosangela Marina Luft (UFRJ;UERJ) e Leandro Franklin Gorsdorf (UFPR)
Resumo:
É no “berço” do direito ocidental que se busca e se apresenta ao estudante, debutante no direito, o brocado romano: ubi homo, ibi societas; ubi societas, ibi jus (onde está o homem, há sociedade; onde está a sociedade, há direito). Se trouxermos esta mesma expressão para a realidade contemporânea, para pensar a condição do homem nas cidades e o papel do direito nesta relação, devemos fazer uma reinterpretação desta máxima, no sentido de afirmar que onde há o direito, está a sociedade; onde há direito, está o homem. O direito deixa de ser produto e passa a ser produtor das relações sociais. Não é possível pensar que o direito é apenas consequência da existência do homem e de sua condição social; o direito é, na verdade, instrumento fundamental de distribuição de poder, um elemento determinante na organização da sociedade e na definição do papel dos homens no espaço.
A teoria do direito e de seus diferentes “ramos” são expostas a partir de verdades dogmatizadas. Alguns dessas pregações estão na vinculação do conceito de direito ao conceito de justiça, em pensar os operadores jurídicos como atores neutros da realização de uma justiça previamente normatizada; ou, ainda, em justificar a existência do direito na necessidade social de segurança jurídica e de limitação do exercício do poder político. Para entender o real papel do direito nos contextos políticos, econômicos e sociais do tempo presente, deve-se colocar em questão algumas dessas verdades e buscar entender onde nasce e como ele opera.
A chamada teoria crítica do direito, não se contentando com as soluções teóricas do dogmatismo jurídico tradicional, propõe uma dialética permanente. Wolkmer explica que a teoria jurídica crítica se trata de uma “formulação teórico-prática que se revela sob a forma do exercício reflexivo capaz de questionar e de romper com o que está disciplinarmente ordenado e oficialmente consagrado (no conhecimento, no discurso e no comportamento) em dada formação social e a possibilidade de conceber e operacionalizar outras formas diferenciadas, não repressivas e emancipadoras, de prática jurídica” (Wolkmer, 2014). Para a teoria crítica, o direito deve ser estudado de modo captar de forma ampla o pluralismo, a contingência e os conflitos característicos das sociedades complexas.
O estudo do direito urbanístico, todavia, sustenta-se ainda em um conjunto de discursos que não rompem com o normativismo abstrato e com o tecnicismo-objetivo e reproduzem ideais de justiça que ignoram as relações políticas e sociais. Isto leva a frustrações do tipo: o Estatuto da Cidade não garantiu os ideais da Reforma Urbana, os planos diretores e os instrumentos jurídicos não são respeitados porque não houve regulamentação, as normas não contemplam ou protegem os grupos mais vulneráveis. Para entender melhor porque isso acontece, deve-se desmistificar a legalidade da dogmática tradicional e introduzir análises sociopolíticas do fenômeno jurídico, aproximando mais o direito do Estado, do poder, das ideologias e das práticas sociais. O direito tem sido instrumento de efetivação de modelos de planejamento que têm o lucro, e não os sujeitos ou seus espaços como finalidade central. Cidades globais, operações urbanas consorciadas, parcerias público-privadas, planos estratégicos de desenvolvimento, condomínios-cidade, legados de megaeventos esportivos são elementos presentes nos discursos de muitos urbanistas e gestores públicos, pautados normalmente em pretextos de eficiência, segurança, empreendedorismo e na modernização das cidades. As estratégias que estão por trás dos modelos contemporâneos de urbanização têm conformado novos conflitos sociais e gerado a exclusão territorial dos cidadãos, os quais deveriam ser os protagonistas da ocupação dos espaços urbanos. Santos alertava que “deixado ao quase exclusivo jogo do mercado, o espaço vivido consagra desigualdades e injustiças e termina por ser, em sua maior parte, um espaço sem cidadãos” (Santos, 1998).
O planejamento urbano, escoltado em fundamentos tecnocráticos e desenvolvimentistas, esconde a desvalorização dos sujeitos e a supervalorização do lucro. Para que o questionamento das formas hegemônicas de planejamento seja possível, deve-se mudar a postura epistemológica e metodológica em relação ao direito e ao papel do Estado no desenvolvimento das relações socioespaciais.
Parte-se, aqui, da postura provocativa de estudos da teoria urbana crítica que invocam a necessidade de sua reestruturação epistemológica tendo em vista a atual fase do capitalismo pós-fordista, ou pós-keynesiano e o fenômeno da revolução urbana (Lefebvre) ou urbanização planetária (Brenner). Esse fenômeno exige uma integração muito maior das questões urbanas com o quadro analítico da teoria social crítica como um todo. (Brenner, 2010). Essa abordagem teria o potencial de explorar as possibilidades de se forjar alternativas à “cidade do lucro”, através das contradições das relações sociais e espaciais existentes, agora transfiguradas pelo capitalismo urbano (ou urbanizado) (Harvey, 2005; Brenner, 2010). Defende-se aqui que essa reorientação da teoria crítica poderá produzir impactos na teoria do direito e, consequentemente, nos discursos sobre direitos, regulação e planejamento, caso haja também uma reestruturação da teoria crítica do direito.
Uma visão crítica da teoria do direito urbanístico permite compreender não apenas as falhas da forma de pensar teoricamente o direito, mas também como este último legitima modelos excludentes de urbanização que têm sido adotados nos últimos anos nas grandes cidades brasileiras, assim como o modus-operandi do chamado planejamento empreendedor. Deve-se centrar as discussões no papel desempenhado pelo direito, que não é simplesmente o direito poder de polícia, mas sim um direitoinstrumento, a serviço de objetivos pré-determinados por grupos econômicos específicos.
A presente sessão-livre tem por objetivo discutir algumas dessas estratégias regulatórias que respaldam as intervenções que vêm acontecendo nas grandes cidades brasileiras. Objetiva-se confrontá-las com as ideias de reforma urbana propostas pela Constituição Federal e pelo quadro jurídico infraconstitucional, que colocam o direito à cidade no status de direto humano que deve ser assegurado a todos os cidadãos. A partir deste cotejo, pretende-se, também, pensar em que medida é possível trocar os mitos da segurança jurídica e da eficiência, por uma prática político-social onde o pluralismo pressupõe a reinvenção da democracia e a socialização institucional da justiça.
A partir da proposta de Brenner, Marcuse et Mayer , com um olhar voltado para o papel do direito e a partir das grandes linhas de aproximação crítica dos estudos urbanos os pesquisadores irão trazer a debate temas que pretendem:
a) Analisar as intersecções sistêmicas entre o modo de produção – inclusive de produção do espaço urbano – e o aparato jurídico que o embasa/legitima;
b) Examinar o equilíbrio instável entre as forças sociais, as relações de poder, as desigualdades geográficas e as estruturas político-institucionais que forjam e são forjadas pela evolução da urbanização empreendedora;
c) Lançar luz sobre os processos de espoliação, de marginalização e as injustiças banalizadas no contexto das configurações urbanísticas existentes, bem como visibilizar as lutas (por direitos), as resistências e as insurgências produzidas em torno do planejamento, do Estado e da apropriação do espaço;
d) Evidenciar as contradições e as linhas de conflito – potencial ou deflagrado – entre os diversos atores que disputam as cidades contemporâneas;
e) Definir, politizar e juridicizar estratégias que contribuam para novos arranjos de vida urbana, baseados na justiça social, na emancipação coletiva e na diversidade
f) Avançar na construção teórica do direito à cidade como novo direito humano. Dentro do que aqui será denominado de direito urbanístico crítico, as exposições dos pesquisadores desta Sessão Livre colocarão em debate o papel regulatório do Estado, adotando uma postura epistemológica e metodológica na qual se questionam as abordagens neutralizantes e instrumentalizadoras da teoria jurídica tradicional e são buscadas alternativas emancipatórias para se garantir o direito amplo à cidade.
Exposição: Levando o(s) espaço(s) a sério: o direito à cidade como giro epistemológico na teoria do direito e da justiça
Expositores: Arthur Nasciutti Prudente (UFMG), Júlia Ávila Franzoni (UFMG), Thiago Hoshino (UFPR)
Resumo: Pretende - se explorar como a genealogia do direito à cidade demonstra a dialética entre o “oficial” e o “popular”, capaz de provocar abalos no papel tradicionalmente desempenhado pelo direito no meio urbano. Concebido como vislumbre acadêmico, o conceito ganhou a adesão dos movimentos sociais como plataforma política de lutas reivindicatórias e, progressivamente, encarnou em disposições normativas. Inadvertidamente, essa contraditória apropriação e institucionalização promoveu deslocamentos no antigo direito da cidade, focado no planejamento urbano funcionalista - modernista e na ordenação-regulação territorial, abrindo horizonte experimental, dirigido ao buen vivir, à diversidade social, ao aprofundamento da democracia e à (re)coletivização e à produção do espaço . Esta proposta se baliza em três eixos de interação entre a teoria do direito e a teoria crítica do planejamento urbano, a sugerirem reformulações epistemológicas recíprocas: a) o espaço social como potência de efetivação de direitos: giro gramatical do enfoque atributivo de direitos, reterritorializando a retórica da abstração do sujeito universal para a concretude dos lugares (percebidos, concebidos e vividos) para alcançar a justiça sócio - espacial ; b ) o espaço e sua produção / apropriação como objeto de disputa jurídica: giro funcional da pragmática jurídica, substituindo a pacificação social, alegada como seu objetivo último, pelo potencial criativo do conflito, da insurgência e da rebeldia; c ) o espaço como produtor de novos direitos :
giro descolonial da teoria jurídica, reconhecendo espaços de diferença ( heterotopias ) como espaços de esperança ( utopia ) e fonte de novos direitos para além do instituído.
Exposição: Novas subjetividades políticas para novos sujeitos de direitos: as questões de gênero e étnico racial
Expositores: Leandro Franklin Gorsdorf (UFPR), Thiago Hoshino (UFPR)
Resumo: A possibilidade para se (re)pensar o Direito a Cidade a partir de um direito urbanístico critico, deve considerar as diversas facetas da comunidade política conformante e dissonante que postula/demanda por direitos. No campo da reforma urbana, tradicionalmente os movimentos sociais de moradia tiveram e têm a primazia no espaço de discussão dos marcos legais ou políticos do direito urbanístico, seja da emenda popular da Reforma Urbana a Carta Mundial pelo Direito a Cidade. Esta presença política se deve pelo fato histórico que a luta pela terra no Brasil ser o nó dos conflitos, ou mesmo porque foram estes que primeiramente se organizaram nas cidades e fizeram frente as desigualdades resultantes de uma cidade do capital. Neste processo crescente e vertiginoso de urbanização temos que a pluralidade dos sujeitos demandantes por direitos se amplia, alargando a própria agenda de direitos pela Reforma Urbana, ou pelo Direito a Cidade. Apesar deste processo estas novas subjetividades políticas tem um caminho para o seu reconhecimento como sujeitos de direitos, de direito a Cidade. A proposta é trazer para centralidade do debate as especificidades das dimensões de gênero e étnico-racial para criticamente rever os parâmetros jurídicos estabelecidos pelo direito urbanístico. Pretende-se lograr os seguintes objetivos: a) Levantamento de aportes teóricos a partir da discussão de gênero e étnico - racial com potencial para colocar em suspensão categorias jurídicas estabelecidas pelo ordenamento jurídico; b) Apontamento das potencialidades e obstáculos da agenda de direitos de gênero e étnico racial no direito urbanístico, a partir de casos práticos.
Exposição: Por cidades sem catracas! As jornadas de junho de 2013 como laboratório crítico e epistemológico
Expositores: Alexandre Mendes (UERJ), Mariana Medeiros (UERJ), Marcela Munch (UERJ)
Resumo: As “jornadas de junho de 2013 ” trouxeram para o debate público questões que continuam sendo interrogadas , tanto no âmbito teórico , como na práxis dos movimentos político - sociais . O objetivo do presente trabalho é explorar, de forma introdutória, algumas possibilidades de interpretação das jornadas, a partir dos seguintes eixos: a ) genealógico : a análise das jornadas a partir do conceito histórico de “ emergência ” e de produção de sentidos no confronto entre forças distintas (Foucault, 1973). Recupera-se a dimensão de historicidade e dos vetores de expressão que foram criados, não através de pautas e formas tradicionais de organização, mas pela constituição de uma “linguagem comum ”, que articula laboratórios de ação e práticas de comunicação no urbano. b) epistemológico: uma investigação das jornadas que se utiliza das lentes descoloniais e críticas para compreender a retórica de direitos humanos ali presente e o seu potencial insurgente. A finalidade é apresentar as jornadas como um campo de expressão de formas de vida que escapam da racionalidade do urbanismo moderno e pós-moderno, e trocam a prática individualista e passiva do “sujeito de direitos em oposição ao Estado” por uma prática conflitual, que parte de territórios e subjetividades fronteiriças. A partir de ambos os eixos, busca - se contribuir para uma leitura que assume as jornadas como um laboratório de inovação político - teórica que está longe de ser esgotado.
Exposição: O papel dos bens públicos nas políticas urbanas e a doutrina(ção) sobre os bens do Estado
Expositores: Rosangela Luft (UFRJ), Madalena Alves dos Santos (UERJ)
Resumo: A teoria jurídica sobre bens públicos é tradicionalmente construída a partir de elementos legais que enfocam a titularidade desses bens por pessoas jurídicas de direito público interno, as classificações que são estabelecidas pelo art. 99 do Código Civil – bens de uso comum do povo, de uso especial ou dominicais – e o regime jurídico aplicável – que impõe limites quanto à disposição. As diferentes particularidades que surgem em relação aos bens públicos ou aos bens destinados para fins públicos provocam argumentações teóricas (ou retóricas) para “encaixá-las” nas situações estabelecidas legalmente.
No entanto, a complexidade contemporânea do papel do Estado na regulação do espaço urbano e na implementação de políticas públicas, que determinam as condições de acesso a esse mesmo espaço, exige uma análise crítica do papel dos bens públicos. Deve-se reorientar a destinação do patrimônio de forma coordenada com ao papel desempenhado pelos poderes públicos, especialmente naquilo que diz respeito à promoção do direito à cidade, à transparência e à participação popular. O conceito orientador neste processo deve ser o da função social da propriedade pública, cujo sentido é substancialmente diverso daquele aplicável à propriedade privada. Algumas das particularidades da função social dos bens públicos são efeito da destinação destes para servir interesses públicos e sociais. De um lado isto impede que imóveis públicos sejam desvirtuados para atividades privadas sem justificação relevante e, de outro, reforça a legitimidade do Estado para destinar terra pública para promover programas e políticas sociais e para regular o mercado imobiliário nas áreas urbanizadas
Exposição: Estado, cidades e direitos.
Expositor: Ângela Moulin Penalva Santos (UERJ), Bianca de Fátima Teixeira Caldas (UERJ), Pedro Vasquez (UNICAMP)
Resumo: O Planejamento Urbano emerge como instrumento de políticas públicas no século XIX, no contexto da expansão urbana associada ao surgimento da indústria, visando o ordenamento das cidades . O Estado era entendido, à época, como o agente protagonista e responsável pela ordem urbanística. Desde então, ampliam - se os escopos para além da regulação do uso e da ocupação do solo , incluindo iniciativas de fomento à provisão de infraestrutura e à execução de serviços para uma sociedade cada vez mais urbanizada, concentrada em grandes cidades, característica da metropolização. Neste trabalho, analisa-se o processo de urbanização brasileiro, que evoluiu pari passu com o avanço na garantia de direitos sociais, especialmente a partir da Constituição Federal de 1988, que institui o país como Estado Democrático de Direito, sob o federalismo tripartite. Apresenta-se, então, o desafio da territorialização destes direitos, avaliando-se transformações que acabam por colocar em xeque o papel do Estado ao longo do tempo, considerada a ampliação de suas responsabilidades por políticas urbanas e limites orçamentários, levando-o, por vezes, a se associar à iniciativa privada. Considera-se, também, a alteração no próprio sentido de interesse
público, que passa a incluir o interesse coletivo, e não apenas os almejados pelas ações realizadas diretamente pela Administração Pública. A afirmação de direitos coletivos – difusos – como é o caso do meio ambiente, vem a se somar aos desafios da gestão das cidades. Tenta-se, portanto, contribuir na discussão sobre a ação do Estado e a efetividade das políticas públicas urbanas.