SL14 A urbanização brasileira nas sendas da propriedade privada da terra:

processos, contradições e conflitos

  • Pedro Henrique de Mendonça Resende
  • Thiago Macedo Alves de Brito
  • Luiz Antônio Evangelista
  • Igor Rafael Torres Santos
  • Laura Amaral Faria
Palavras-chave: urbanização brasileira, propriedade privada da terra

Resumo

SL-14. A urbanização brasileira nas sendas da propriedade privada da terra: processos, contradições e conflitos

Coordenador: Pedro Henrique de Mendonça Resende (UFMG)

Resumo:

Esta Sessão Livre reúne comunicações que discutem categorial e historicamente como a urbanização se (re)define através da constituição e crescente mobilização da propriedade privada da terra no âmbito da reprodução social capitalista. Os processos, contradições e conflitos que envolvem a propriedade privada da terra serão apreendidos a partir da urbanização brasileira. Principalmente nas cidades tornadas metrópoles, nas quais as possibilidades advindas da manipulação de rendas fundiárias não raro alimentaram o processo de industrialização, as articulações entre proprietários, incorporadores, grupos financeiros, consultores, revendedores e Estado produziram e têm produzido empreendimentos imobiliários diversos. Negócios são viabilizados com o parcelamento, a compra, a venda, a incorporação, a verticalização, o financiamento, a capitalização e a financeirização da propriedade fundiária. A subordinação da re-produção do espaço à reprodução do capital acirra, todavia, contradições e conflitos que se explicitam nas “apropriações insurgentes” dos movimentos sociais urbanos. Estes, em face do crescimento econômico que não necessariamente implica em desenvolvimento social, têm trazido à tona novas possibilidades de organização e articulação políticas. Considerando a temática deste XVI ENANPUR, discute-se, assim, não apenas as relações entre a propriedade privada da terra e a proeminência alcançada contemporaneamente pela re-produção capitalista do espaço urbano, como também os desafios que tais relações impõem tanto para as reflexões teóricas e práticas dos “especialistas” voltados à “problemática urbana” quanto para as “apropriações insurgentes”.

A liberdade moderna está formalizada no “sujeito de direito” como portador universal e abstrato de direitos, o que normatiza a propriedade privada, a forma jurídica do contrato, o Estado e a universalização da produção e circulação de mercadorias conforme as relações capitalistas. Definida negativamente no duplo sentido de que os produtores transformados em trabalhadores não integram mais os meios de produção nem estes lhes pertencem, a liberdade moderna pressupõe que os produtores diretos convertem-se em vendedores de força de trabalho que precisam se subjugar aos proprietários dos meios de produção, os capitalistas, para sobreviver. A reprodução do capital, por sua vez, para alcançar o processo de industrialização, enfrentou inicialmente na Europa os senhores feudais e as corporações que detinham as fontes da riqueza. Mas como propriedade privada móvel e relação social de produção, o capital triunfa sobre a propriedade fundiária imóvel subordinando-a, ao subverter as condições sociais para a produção da riqueza em favor da sua própria valorização, tornando-se hegemônico e constituindo um modo de produção caracterizado pela dinâmica do “valor em movimento”, o que não ocorre sem contradições. Determinada historicamente pela separação entre trabalhadores e a propriedade das condições para realização do trabalho, a reprodução social capitalista pressupõe, pois, uma “santíssima trindade”: “proprietários” de terra, trabalho e capital, remunerados, respectivamente, por renda da terra, salário e lucro.

Foram os autores da chamada economia política que primeiro investigaram a decomposição do valor das mercadorias em renda fundiária, salário, lucro e juro, indicando que tais categorias são deduções do lucro e, portanto, vinculadas ao trabalho assalariado. Transpondo o nível de estudo da reprodução e acumulação do capital limitado à aparência das formas de fracionamento da riqueza social, Karl Marx compreendeu a força de trabalho como a mercadoria que, ao produzir determinada mercadoria cujo valor é mais alto do que a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi-la, produz a riqueza social sob o capitalismo - o valor e o mais-valor. Embora, à primeira vista, a terra, por exemplo, pareça dotada de vida própria, como se a renda fosse proveniente de uma “base natural”, apreende-se, entretanto, que se trata de parte do valor em geral produzido pelo trabalho social. Dissociada de antigas relações de sujeição e mantida como direito independentemente do seu uso efetivo, a propriedade fundiária passou a permitir a apropriação de renda por meio da troca em dinheiro. Como monopolizam as terras, os proprietários fundiários cobram daqueles que desejam adquiri-las ou usá-las uma parcela da riqueza social, mesmo sem necessariamente terem contribuído com sua produção, o que acabou caracterizando-os como “parasitários” e “supérfluos”.

Se a princípio constitua uma espécie de obstáculo à continuidade da acumulação, a propriedade fundiária tem se tornado, contudo, cada vez mais uma espécie de ativo imobiliário ou financeiro conduzido pelas potencialidades de capitalização. Dessa maneira, desde meados do século XX, com a explosão-implosão da cidade industrial e a urbanização planetária conduzida por uma miríade de setores vinculados à reprodução do espaço, a renda fundiária assumiu importância inédita no conjunto da acumulação capitalista - “o capitalismo se manteve pela conquista e integração do espaço”, afirma Henri Lefebvre -, impulsionando certas discussões das questões implicadas pela e na propriedade fundiária. Ao analisar a reprodução do capital na construção civil, por exemplo, destaca-se o “sobrelucro setorial” necessário para remunerar os proprietários que monopolizam a terra: ao “excesso” de trabalho na construção civil, capitaneado por outros setores da economia, corresponde o “excedente” capturado de outros setores pelo preço de monopólio dos “imóveis” (acima do preço de produção). Para David Harvey, a re-produção do “espaço construído” através da reprodução do capital aplicado no “imobiliário” envolve intrincadas relações entre lucro e renda fundiária, complexificadas pela presença cada vez mais efetiva do capital que rende juros. Positivada pela representação de que “todos nós” estaríamos “ganhando” com o crescimento das cidades, a ascensão contemporânea dos negócios com a propriedade fundiária urbana e a incorporação imobiliária - a “imobilização do capital no (i)mobiliário” - se vincula decisivamente com o capital financeiro, seja no financiamento da produção, oferta e compra de “imóveis”, seja na conversão da renda da terra em capital fictício por meio de títulos de propriedade trocados como puro bem financeiro (o que ocorre no Brasil desde 1990, após a concentração e abertura do capital de incorporadoras, juntamente com o surgimento de novos mecanismos financeiros tais como os Fundos de Investimentos Imobiliário, a securitização de propriedades, os títulos derivados de contratos hipotecários).

O predomínio do econômico assegurado pelo político na re-produção do espaço capitalista implica, porém, não apenas circuitos de valorização do capital, estratégias de classes e benefícios a setores econômicos, como também relações de dominação mantidas por meio da política na sua forma alienada no Estado. Além de direcionar e impulsionar a valorização dos patamares do preço da terra, viabilizando a manipulação e capitalização das rendas fundiárias e redefinindo os usos do espaço, as obras infraestruturais e os “serviços urbanos” conduzidos pelo Estado somente são implementados à medida que permitem a empresas privadas auferir lucros. Ao longo de uma urbanização anticidadã, onde relações antipolíticas encontram “terreno fértil” para se reproduzirem, nega-se recorrentemente à sociedade civil brasileira o exercício efetivo dos direito sociais. A incorporação da sociedade civil ao Estado através de uma forma desradicalizada de democracia (de consumidores) mantém e desenvolve relações de troca de favores entre governantes e governados, em que aqueles prometem direitos concedidos como “caridade” a estes. Não desvinculadas de interesses privados e da manutenção da reprodução do espaço nos marcos do capitalismo, as intervenções do Estado buscam sobretudo consentimento às suas prerrogativas, sustentando especificidades desta (de)formação social que, embora geralmente tida como “atrasada”, o contrapondo ou a falta do moderno, é seu produto e fundamento, assim como a periferia e a periferização na urbanização brasileira são consequências e condições do centro e da concentração do poder.

“Apropriações insurgentes” expressas nas lutas dos movimentos sociais urbanos, não por acaso, muitas vezes se veem desmobilizadas ou impedidas de conduzir suas ações políticas por fora da órbita do Estado. Nesse sentido, a chamada Reforma Urbana, por exemplo, a princípio com face social de caráter democrático-popular, foi crescentemente conduzida em favor de soluções de mercado, parcerias públicoprivadas, planejamento estratégico e gestão focalizada da pobreza. Ao explicitarem a passagem das contradições no espaço para as contradições do espaço, algumas reivindicações dos movimentos sociais urbanos no Brasil foram “mediadas” pelo “Estado democrático de direito” de tal modo que os conflitos relacionados à urbanização levaram à constituição do Estatuto da Cidade (2001), por meio do qual o direito à propriedade privada da terra seria conciliado ou compensado com o cumprimento da “função social da propriedade”. O reconhecimento de que as “lutas urbanas” já alcançaram conquistas efetivas, não deveria, entretanto, obscurecer o fato de que estratégias de capitalização da renda fundiária e intervenções urbanas em função de negócios têm sido viabilizadas por meio da(s) “Reforma(s) Urbana(s)” (com as Operações Urbanas e CEPACS, entre outros instrumentos de “política urbana”).

Ainda que negligenciados, tornam-se cada dia mais urgentes os debates acerca tanto da propriedade privada da terra no âmbito da urbanização capitalista quanto das (im)possibilidades inscritas na urbanização da sociedade. Contradições concretas evidenciam-se, particularmente na crise do capital (expressa nos circuitos imobiliários-financeiros) e no acirramento de conflitos entre, de um lado, negócios com a propriedade da terra e o mercado “imobiliário” - desde o “alto padrão” arquitetônico até o Minha Casa, Minha Vida -, e, de outro, a necessidade de morar e as lutas pelo uso e “direito à cidade”, reivindicações das “ocupações urbanas”. Para que a história seja conduzida por homens livres e não pela reprodução do espaço capitalista é necessário, finalmente, que as “apropriações insurgentes” articulem uma revolução urbana teórica e prática, que passe pelo fim da política na sua forma estatal e da propriedade privada.

Exposição: A propriedade privada da terra e a urbanização no Brasil

Expositor: Pedro Henrique de Mendonça Resende (UFMG)

Resumo: Esta comunicação discute o “espaço” da propriedade privada da terra a partir de meados do século XIX no processo de urbanização no Brasil. Considera que contradições para a reprodução ampliada do capital através da produção agroexportadora, em terras concedidas a proprietários de escravos, engendraram a “transição” para o regime de “trabalho livre”, uma vez redefinido jurídiconormativamente o acesso às terras (com a Lei de Terras de 1850) e asseguradas novas condições para a subsunção do trabalho ao capital. Circunscritas ao direito de propriedade privada e adquiridas mediante pagamento em dinheiro, as terras passaram a servir como meio de apropriação de renda por seus proprietários, mesmo se desvinculadas do uso efetivo. A metamorfose do lastro em escravaria para a propriedade privada da terra viabilizou, portanto, que frações da riqueza social capitalista passassem a ser manipuladas como rendas fundiárias. À medida que a reprodução do espaço se fez cada vez mais conforme o movimento reprodutivo do capital, rendas fundiárias foram capitalizadas (re)definindo a urbanização. Ao analisar a questão da propriedade privada da terra no âmbito da urbanização brasileira, trata-se de articular teoricamente os fundamentos do que se explicita, por exemplo, na multiplicação de loteamentos e incorporações “imobiliárias”, na industrialização nutrida pelo mercado de terras e vice-versa, na ação do Estado e do urbanismo em função menos de necessidades e direitos sociais do que de negócios que envolvem a valorização de propriedades fundiárias através principalmente da produção de infraestruturas espaciais e de leis urbanísticas, repondo formas e conteúdos antidemocráticos.

Exposição: Apontamentos acerca do estatuto da propriedade privada na obra de Marx

Expositor: Thiago Macedo Alves de Brito (UFMG)

Resumo: O interesse de Marx pelo estudo da propriedade privada na sociedade burguesa tem suas raízes em um artigo de 1842 a respeito da lei que proibia o roubo da lenha na Prússia. Pouco tempo depois Marx critica na filosofia do direito em Hegel a pretensa conciliação da oposição entre Estado e sociedade civil que a propriedade privada, como termo médio, realizaria. De 1844 até o final de sua vida Marx estuda principalmente processos e “interesses materiais” presentes na sociedade moderna, discutindo os limites tanto do Estado quanto da economia política (como teoria e prática próprias dessa sociedade), o que indicaria para a urgência da superação de tais formas de existência. Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, em particular, a propriedade privada é apresentada como origem e originária do trabalho alienado (alienado dos meios de produção, dos produtos do trabalho, da terra, etc.). Com o desenvolvimento da crítica da economia política Marx busca desvelar as contradições entre proprietários fundiários, proprietários dos meios de produção e proprietários de força de trabalho. Ao descobrir que a aparente relação de igualdade entre capital e trabalho, pressuposta pela forma jurídica, esconde uma relação desigual, Marx constata que a quantidade de trabalho incorporado às mercadorias é maior que a quantidade de trabalho correspondente ao salário pago aos trabalhadores mais outros custos de produção, ou seja, o capitalista usurpa trabalho excedente na forma de maisvalor. Fazendo breves referências, por fim, à teoria da renda da terra, esta comunicação revisita a ampla crítica à propriedade privada feita por Marx.

Exposição: Quais "sujeitos" querem habitar a metrópole?

Reflexões acerca dos conteúdos atuais das lutas e reivindicações...

Expositor: Luiz Antônio Evangelista (IFES) Resumo: Uma das atribuições com as quais a forma sujeito reveste os indivíduos na sociedade burguesa é a da condição de proprietários privados. Tornados iguais juridicamente e dotados de “vontades livres”, os indivíduos têm resguardados, dentre outros direitos, o da aquisição da propriedade fundiária, bem como a garantia da sua inviolabilidade. Não é novidade dizer que o ato de habitar é uma necessidade fundamental e também uma conquista do gênero humano, embora sua realização esteja inscrita nos marcos da sociabilidade do valor. Talvez não seja novidade também dizer que a propriedade demarca desigualdades, precisamente por ser inviolável face às normas jurídicas brasileiras e por seu acesso se fazer pelas relações mercantis entre indivíduos monetarizados. No limite, as condições para este acesso acabam sendo precárias, sobretudo porque a propriedade, nas espacialidades urbanometropolitanas, está envolvida numa rede de negócios cujas manipulações das rendas fundiárias e juros impõem a necessidade de uma demanda solvável para a aquisição da propriedade sob a forma da mercadoria “imóvel”. Assim, a via possível para aqueles que não possuem a propriedade e estão alijados, não raro, do elementar da vida urbana, são as reivindicações e lutas que, a despeito dos seus limites emancipatórios na sociedade, colocam em questão os termos do acesso à propriedade. Isto posto, o objetivo dessa comunicação é o de contribuir na reflexão acerca dos modos atuais do Estado lidar com tais reivindicações e lutas e sua emergência na sociedade civil, os quais, na problemática aqui proposta, se dão também pelo acesso à propriedade.

Exposição: A reestruturação urbana contemporânea e os negócios com a propriedade privada da terra

Expositor: Igor Rafael Torres Santos (IFMG)

Resumo: Esta comunicação discute a relação entre a urbanização contemporânea e a reprodução social capitalista a partir de determinados fundamentos e fenômenos próprios dos processos de metropolização em curso no Brasil. Considera-se, para tanto, as transformações nos padrões gerais da acumulação do capital desde a emergência do neoliberalismo no final da década de 1970 e o papel do Estado nesses processos. As necessidades postas pela “nova economia de fluxos e capitais” – relativa principalmente às alterações tecnológicas, produtivas e na gestão – têm transformado as relações entre Estado, capital e produção do espaço urbano, o que se verifica, por exemplo, nas chamadas “reestruturações urbanas” de vastas áreas das metrópoles, viabilizadas geralmente pelas parcerias público-privadas (como as Operações Urbanas) e consideradas indutoras do desenvolvimento econômico, na emergência do “planejamento estratégico” e da gestão urbana “empresarial”, no city marketing e na espetacularização de áreas centrais. Nesse contexto, trata-se de ressaltar como o Estado não apenas consolida juridicamente a propriedade privada da terra, mas também viabiliza estratégias e interesses privados vinculados, sobretudo, à reprodução do capital por meio da produção de infraestruturas e equipamentos urbanos, o que engendra eixos de valorização dos patamares de preço da terra e multiplica os negócios imobiliários. Ao observar grandes projetos e obras “estratégicas” realizadas contemporaneamente nas metrópoles brasileiras, esta comunicação discute, por fim, algumas das contradições que se acirram através da segregação sócio-espacial e da negação da vida urbana.

Exposição: A produção de propriedades excepcionais na metropolização contemporânea: natureza, arte e renda da terra a partir do Instituto Inhotim

Expositora: Laura Amaral Faria (UFMG)

Resumo: O objetivo desta comunicação é refletir acerca da composição de rendas da terra, notadamente as rendas diferenciais e de monopólio, garantidas pela produção de “novas raridades” e de grandes equipamentos culturais que se destinam ao entretenimento, lazer e turismo na metrópole. A obtenção dessas rendas remete aos processos de fetichização e espetacularização da natureza, da cultura e da arte por meio dos quais foram e são produzidas novas mercadorias potencializadoras da reprodução do espaço. A multiplicação de “áreas verdes” e museus na metrópole de Belo Horizonte, muitas vezes anunciados como empreendimentos benéficos à sociedade, não apenas não resolve questões fundamentais da sociabilidade moderna – como a alienação e a propriedade privada –, mas pode contribuir para aprofundá-las haja vista as relações de apropriação que reproduzem. Destaca-se, nesse contexto, a aquisição de várias propriedades fundiárias situadas próximas à sede do município de Brumadinho (RMBH-MG) pelo empresário do ramo de mineração de ferro e de reflorestamento Bernardo Paz, o qual assegurou as condições para a implantação da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) Instituto Inhotim. Trata-se de um parque-museu onde obras de arte contemporâneas são exibidas em meio a extensos jardins meticulosamente trabalhados que abrangem cerca de 100 hectares. Está prevista a construção, no entorno do Instituto Inhotim, de um complexo turístico e imobiliário que inclui hotel de luxo, spa, condomínio residencial, campo de golfe e centro de convenções, através de investimentos de empresas privadas que têm parte na gestão do Instituto.

Publicado
2019-05-20
Seção
Sessão Livre