SL21 Justiça Espacial: sentidos, (contra)usos, fronteiras

  • Thiago A.P. Hoshino
  • Rosa Moura
  • Laura Esmanhoto Bertol
  • Giovanna Bonilha Milano
  • Leandro F. Gorsdorf
  • Rosângela Marina Luft
  • Felipe B.F. Soares
  • Arthur N. Prudente

Resumo

Justiça Espacial: sentidos, (contra)usos, fronteiras Spatial Justice: meanings, (conter)uses, boundaries

Coordenador: Thiago A. P. Hoshino, UFPR/Observatório das Metrópoles, Doutorando/Pesquisador, hoshino.thiago@gmail.com

Debatedora: Rosa Moura, IPEA, Pesquisadora, rmoura.pr@gmail.com

Embora haja sido frutífero o desenvolvimento de diversas categorias de inspiração lefebvriana, como o “direito à cidade” – atualmente incorporado tanto às agendas dos movimentos sociais quanto às de pesquisadores e das instituições – ainda são eventuais as aproximações teóricas daquilo que se alcunhou de “justiça espacial”. Nesse sentido, é possível identificar o investimento de toda uma tradição anglo-saxônica (Soja, Marcuse, Fainstein, Harvey, etc.) na consolidação do conceito, com importantes desdobramentos posteriores, cuja permeabilidade, todavia, ainda é baixa no debate brasileiro e latino-americano. Embora haja sido frutífero o desenvolvimento de diversas categorias de inspiração lefebvriana, como o “direito à cidade” – atualmente incorporado tanto às agendas dos movimentos sociais quanto às de pesquisadores e das instituições – ainda são eventuais as aproximações teóricas daquilo que se alcunhou de “justiça espacial”. Nesse sentido, é possível identificar o investimento de toda uma tradição anglo-saxônica (Soja, Marcuse, Fainstein, Harvey, etc.) na consolidação do conceito, com importantes desdobramentos posteriores, cuja permeabilidade, todavia, ainda é baixa no debate brasileiro e latino-americano.

Impulsionada por esse hiato, a sessão propõe explorar as potencialidades do conceito, na pluralidade de (contra)usos e sentidos que assume tanto na literatura acadêmica, quanto na prática política de diversos atores sociais. E se propõe a fazê-lo na arriscada fronteira interdisciplinar (multi? trans?) a que necessariamente conduz a conjugação de “justiça” e “espaço”. A partir de abordagens críticas, instiga-se a questão: qual a rentabilidade da “justiça espacial” para a reflexão sobre o urbano na contemporaneidade? Nas seminais palavras de Philippopoulos-Mihalopoulos (2016): “Spatial justice could be the most radical offspring of law’s spatial turn. Instead, in the literature it remains a geographically informed version of social justice, a slightly trendier conceptualisation that casts sideways glances to its surroundings.”

Com enfoques não convencionais, a cidade e os direitos – nela inscritos e/ou restritos – recebem, nesta sessão, a atenção de planejadores(as), urbanistas, juristas e antropólogos(as), sobretudo num momento em que a gramática dos direitos (“rigths talk”) se expande para ser mobilizada também por discursos contestatórios e reivindicatórios. Para além da instituição formal de tais direitos, todavia, as vozes coletivas que emergem denunciam a manutenção e a reinvenção de práticas oficiosas e imaginários urbanos de exclusão, marginalização e subordinação.

Portanto, a normatividade – tanto em sentido clássico, legal, positivo, quanto em sentido foucaultiano, difuso, constitutivo – comparece aqui como objeto privilegiado de análise, na medida em que desenha fronteiras físicas e simbólicas para o acesso, a produção e a apropriação do espaço. Distintas corporalidades, performatividades, modos de vida e de organização social são vetados por meio de interditos territoriais, ao passo que a forma-mercadoria coloniza as cidades e o consumo se transforma na via hegemônica de experiência urbana.

A discriminação se enraíza espacialmente e configura mecanismos de disciplinarização e controle com viés de classe, de raça, de sexo, de gênero. Também na própria administração de controvérsias (as fundiários, por exemplo), nos protocolos de policiamento (que produzem seu próprios alvos preferenciais), na prestação de serviços públicos (como o transporte) ou nos programa estatais (como de moradia), estratégias biopolíticas sutis informam as posturas e critérios de seleção da população, tornada objeto e não sujeito de direitos fundamentais. Esse arsenal opera em associação com dispositivos extrajurídicos, como a política das escalas, a ambientalização dos conflitos e a securitização da vida. Não à toa, à justiça espacial conectam-se conceitos outros como os de “justiça ambiental”, “justiça escalar”, “justiça histórica”, articulados a partir de diferentes lugares de fala que são tanto metafóricos quanto materiais: são performáticos e portam uma potência política inegável.

Os trabalhos apresentados na presente sessão aportam elementos empíricos e teóricos para essa outra “cartografia dos direitos”. Parcialmente declarado – em tratados, constituições e leis – e parcialmente subterrâneo – fundadas no estigma, na microfísica e nas silenciosa repressividade –, os mapas das ausências, da realização diferencial dos direitos e da construção diferencial das próprias subjetividades permitem articular os conceitos de “différance” e de “vie quotidienne” de H. Lefebvre no contexto brasileiro e com outras genealogias de pensamento. É o que demonstram os quatro estudos de caso e pesquisas aqui reunidas, fruto de diálogo entre três instituições distintas e variados marcos analíticos, apontando para espaços de heterotopia e (r)existência. os quatro estudos de caso e pesquisas aqui reunidas, fruto de diálogo entre três instituições distintas e variados marcos analíticos, apontando para espaços de heterotopia e (r)existência.

As encruzilhadas da democracia, a potência multitudinária (à la Negri) das emergência sociais e o futuro do pensamento crítico estão pautados na tríade crise, resistência, desenvolvimento que empresta o mote do XVII ENANPUR. As quatro comunicações que conformam a presente sessão enfrentam essa tringulação, em campos variados:

- Giovanna Milano e Laura Bertol organizam uma reflexão sobre a crise da política de habitação de interesse social a partir do desenvolvimento de critérios de seletividade, estigmatização e exclusão territoriais, os quais, tanto na esfera administrativa quanto judicial, tratam seus beneficiários como “invasores” em espaço alheio. Os agentes da burocracia e do Poder Judiciário, neste sentido, formulam narrativas que apresentam os titulares do direito à moradia como outsiders.

- Thiago Hoshino e Leandro Gorsdorf abordam as (r)existências urbanas a partir do conceito de lawscap, que explicita a normatividade ínsita ao espaço e os dilemas da coexistencialidade entre corpos (cores, raças, sexos) diferentes e divergentes, em sua performatividade. Ao focalizar tanto as regras expressas, formais, como códigos de posturas, quanto as fronteiras simbólicas da cidade, encampam a justiça espacial como uma oscilação entre posições tensas e suas reivindicações.

- Rosângela Luft desconstrói os mitos envolvendo o planejamento e a gestão do transporte público, em sua interface com a realização do direito à cidade, sob a ótica da artificialidade dos modelos econômicos e as respostas jurídicas criadas para atendê-los (como a noção de “equilíbrio econômico-financeiro” nas concessões do serviço), em diferentes escalas urbano-regionais, enfatizando o déficit democrático das decisões e procedimentos centrais desta política.

- Felipe Soares e Arthur Nascimento, por fim, desfiam e desafiam a teia de controles e subversões presentes na pixação, um conflito entre distintos imaginários urbanos e formas de apropriar-se da cidade, em que a propriedade privada se contrapõe ao convite que oferecem as superfícies, à arte e aos artistas, em que o espaço concebido (e regulado) se contrapõe ao espaço vivido, na cotidianidade.

Como realizar, em cada um dos cenários pintados, as funções sociais da cidade (art. 182 da Constituição de 1988) e a justa distribuição de benefícios e ônus do processo de urbanização (art. 2o, IX do Estatuto da Cidade)? Em tempos de globalização liberal, qual a natureza da cidade possível? Em tempos de refluxo autoritário, qual o espaço da divergência/diferença possível? Em tempos de crise democrática, qual o horizonte político possível? Em tempos de judicialização da política e de politização da justiça, qual a justiça urbana possível? Qualquer que seja a reposta, ela necessariamente passa pela justiça espacial. 

HIS E (IN)JUSTIÇA ESPACIAL: INTERDITOS E SELETIVIDADE NA GESTÃO URBANA CONTEMPORÂNEA

Laura Esmanhoto Bertol, Giovanna Bonilha Milano

A garantia de áreas bem localizadas e dotadas de infraestrutura para a produção de habitação de interesse social é um dos componentes essenciais para se efetivar o direito à cidade. Desde a aprovação do Estatuto da Cidade as potencialidades e a necessidade de delimitação de Zonas Especiais de Interesse Social, tanto na demarcação de áreas vazias como em locais para a regularização fundiária, têm sido destacadas como importante instrumento para essa finalidade. Entretanto, simultâneamente, vêm sendo criados ou reforçados uma série de mecanismos, que claramente obstaculizam a implantação de empreendimentos habitacionais em áreas centrais e urbanizadas. Entre os fenômenos mais notáveis está a criação de uma suposta nova categoria de uso: o conjunto habitacional. Este não deveria ser nada além de uma categoria histórica, uma tipologia arquitetônica utilizada massivamente como resposta ao problema habitacional brasileiro e não uma categoria de uso do solo, já que corresponde ao que normalmente se classifica como habitação multifamiliar. Entretanto multiplicam-se as legislações municipais que estabelecem diversas obrigações adicionais ao processo de licenciamento urbanístico desses empreendimentos, destacando-se a exigência de Estudos de Impacto de Vizinhança, como se essa fosse uma tipologia habitacional que causasse incomôdos a priori, independente das densidades populacional e construtiva previstas. A aparente ambiguidade dos dispositivos urbanísticos mobilizados para a implantação da habitação de interesse social - entre as ZEIS e os conjuntos habitacionais - aponta para a permanência na hierarquização dos espaços urbanos a atuação seletiva da gestão urbana em relação aos interditos e permissões sobre o morar nas cidades contemporâneas.

NAS FRONTEIRAS DA LAWSCAPE: RAÇA E SEXO NA CIDADE

Leandro F. Gorsdorf, Thiago A. P. Hoshino

A cidade como teia de relações sociais congrega elementos não raro ignorados tanto pela ação estatal quanto pelo discurso preponderante da "sociedade civil organizada", em razão da própria matriz teórica que, tradicionalmente, mobilizam. Explorando essa lacuna, argumenta-se que pensar-fazer o direito à cidade extrapola a redistribuição locacional do acesso aos bens urbanos e tampouco se esgota na dimensão da produção do espaço. Mais do que isso, está em jogo o lugar da produção das subjetividades políticas e da reconfiguração das identidades coletivas, sobretudo frente ao caráter fundamentalmente corporal dos processos de subjetivação. Fronteiras sexuais são definidas por leis explícitas (por exemplo: contravenções penais e códigos de posturas) ou, implicitamente, por uma normatividade inerente à espacialidade. Do mesmo modo, (re)cortes étnico-raciais marcam a carne da cidade e informam a experiência territorial da diferença, numa sobreposição ausências, estigmas e interditos. Do apartheid aos “rolezinhos”, os sentidos da urbanidade são esgarçados e a (i)legitimidade das presenças questionada. Pretende-se refletir criticamente sobre tal dinâmica dos lugares político-identitários, colocando em diálogo os conceitos de Lawscape, desenvolvido por A. Philippopoulos-Mihalopoulos, e de heterotopia, formulado por H. Lefèbvre. O direito – e seu avesso: resistência, contra-direito, direitos insurgentes – estão ontologicamente inscritos na linguagem e na materialidade, lá onde espaço, corpos e lei resvalam-se. Esse esforço de visibilização na cartografia jurídica implica em trazer à tona corpos que habitam, constroem, movimentam e subvertem a cidade, portadores de uma pulsão de democrática potente. Nessa tensão entre performatividade e performance, à la J. Butler, oscila a justiça espacial. pulsão de democrática potente. Nessa tensão entre performatividade e performance, à la J. Butler, oscila a justiça espacial.

O TRANSPORTE PÚBLICO ENTRE MODELOS ECONÔMICOS E TECNOLÓGICOS ARTIFICIAIS E A PROMOÇÃO DO DIREITO À CIDADE

Rosângela Marina Luft

O transporte público é uma das dimensões essenciais da justiça espacial. Ele é condição necessária para a população se apropriar da cidade, tendo amplo potencial de mitigar as tendências de segregação espacial existentes. Contudo, o direito social ao transporte não se liga apenas ao acesso aos seus meios, mas igualmente ao poder de interferir nas decisões relacionadas a sua provisão, democratizando a produção da cidade. Quando o poder público unilateralmente decide sobre as linhas de transporte por questão de viabilidade do contrato de concessão, efetua aditivos que aumentam exponencialmente o valor da implantação da infraestrutura para atender demandas pontuais de eventos esportivos e padronizar tarifas, ou mesmo opta por modais que reproduzem modelos técnicos de modernização, identifica-se uma deturpação dos fundamentos que legitimam a ação do Estado na prestação deste serviço público. Ademais, a justiça espacial, afora implicar a distribuição de bens materiais, pressupõe a qualidade das interações e dos procedimentos democráticos. A garantia do direito à cidade por meio do transporte público implica politizar as decisões a respeito da mobilidade, atendendo as demandas nas escalaridasdes -locais, metropolitanas e regionais- dentro das quais as interações se realizam. No Brasil atual prevalece um monopólio teórico e técnico em torno da definição das modelagens de transporte. Elas são ditadas por algumas poucas instituições que se prendem em estratégias negociais de equilíbrio econômico-financeiro e em ideais artificiais de modernização, ignorando a mobilidade enquanto elemento fundamental de inclusão socioterritorial e as implicações da inserção do transporte no rol dos direitos fundamentais sociais.

SUPERFÍCIES URBANAS

Felipe B. F. Soares e Arthur N. Prudente

Atualmente, de acordo com a Teoria Crítica Urbana, que parte das proposições de Lefebvre (2007, p. 55), vive-se processo de urbanização planetária, em que noções de fronteira e escala, bem como a forma de ocupação do território (considerando que muitas vezes as análises se dão em proposições duais, partindo de construções antagônicas, como campo e cidade, interior e exterior, centro e periferia, ambiente construído e ambiente natural) não se limitam às fronteiras estabelecidas. Como avaliar, portanto, a justiça social e o direito à cidade considerando os movimentos contrários a essa territorialização da metrópole, como o pixo? A pixação contrapõe-se à lógica de propriedade de nossas cidades, desrespeitando as normas impostas pelas autoridades que controlam a produção de espaços e produzindo cidade desde baixo. Com Halsey e Young (2006) é possível dizer que o espaço urbano concebido pelas autoridades está sujeito à ordenação e ao controle; por outro lado, o espaço vivido pelos pixadores demonstra que é impossível conter a constante resignificação da cidade. Na primeira concepção, as superfícies urbanas são limites que devem ser respeitados; para os pixadores, a cidade é possibilidade, um convite à intervenção e à criação. A criminalização do pixo atenderia à lógica de propriedade e de colonização dos territórios urbanos. A cidade é possibilidade, um convite à intervenção e à criação. A criminalização do pixo atenderia à lógica de propriedade e de colonização dos territórios urbanos.

 

Publicado
2019-05-11
Seção
Sessão Livre