SL - 54 REVISITANDO A HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL NA AMÉRICA LATINA

  • Flávio Antônio Miranda de Souza
  • Edith R. Jimenez Huerta
  • Mercedes Di Virgílio
  • Peter M. Ward
Palavras-chave: Habitação, Interesse Social, América Latina

Resumo

Essa Sessão Livre apresenta os resultados de um estudo realizado pelo Latin American Housing Network (LAHN) sobre a renovação de assentamentos irregulares consolidados em nove países da América Latina por meio de estudos de caso em onze cidades. O LAHN tem coordenação geral do Professor Peter Ward (University of Texas) e conta com pesquisadores de inúmeras universidades, incluindo a University of Texas at Austin, Universidade Federal de Pernambuco, Universidad de Buenos Aires, Universidad de Guadalajara, entre outras. Durante a década de 1970, o principal objetivo dos estudos de assentamentos irregulares na América Latina, e em outras cidades dos países em desenvolvimento, era determinar sua natureza e a dinâmica de seu desenvolvimento com o objetivo de mudar o paradigma da forma como esses assentamentos eram vistos e tratados.
As investigações dessa época levantaram evidências no sentido de que os assentamentos irregulares não eram um fenômeno esporádico, mas sim estrutural. Entendeu-se que a irregularidade era uma resposta dos pobres ante a incapacidade dos governos e do mercado formal de oferecer solo para moradia a preços acessíveis e em quantidades suficientes para responder à crescente e rápida urbanização.
Como consequência da falta de entendimento dos governos sobre os processos de urbanização, durante a década de 1970, os assentamentos irregulares já ocupavam entre 25 e 50 por cento da superfície urbanizada de muitas cidades latino-americanas, africanas e asiáticas. Desde então, estas percentagens mundiais se mantêm, apesar dos registros de variações por cidades e regiões do mundo. Sem dúvida, o número de pessoas que os habita tem aumentado constantemente. Com base nas informações das Nações Unidas, estima-se que em 2020 o número de pessoas que habitarão em assentamentos irregulares seja de 1.500 milhões (Durand-Lasserve, et al., 2002). Isto significa que os assentamentos irregulares consolidados aumentarão também na medida em que o tempo passa. A grande diferença é que a problemática dos assentamentos irregulares criados recentemente é conhecida e existem esforços mundiais para intervir, mesmo que modestamente (UN-HABIAT, 2000), o que não acontece com os assentamentos irregulares consolidados. Isto se deve principalmente porque se supõe que os assentamentos irregulares antigos, por fazerem parte fisicamente da cidade e possuírem infra-estrutura, já não têm mais problemas.
Em temos gerais, a partir da década de 1970 é possível identificar duas gerações de políticas de moradia impulsionadas em países em desenvolvimento por organizações multinacionais, como o Banco Mundial (Ward 2005; UNCHS, 1997). A primeira foi o “Projeto Urbano” que veio substituir a política de desalojamento, destruição de assentamentos irregulares, incluindo aí o retorno dos migrantes rurais desempregados a seus lugares de origem. Políticas públicas, mais positivas, começaram a oferecer apoio ao processo de ocupação irregular do solo; tornou-se mais convencional e aceitável levar adiante projetos e canalizar recursos para a admissão de serviços e infra-estrutura, além de regularizar a posse da terra. Posteriormente, o trabalho comparativo entrou em análises mais amplas, relacionando a irregularidade com a política social e o planejamento, que contribuíram para um melhor entendimento do contexto político, no qual decisões sobre a política de moradia são tomadas (Gilbert e Ward, 1985; ver também UNCHS, 1997).
A partir do final da década de 1980, surgiu uma segunda geração de políticas de moradia: “A Gestão Urbana”, desta vez buscando reforçar as instituições locais e a capacidade governamental para instrumentar ações que puderam ser sustentáveis a longo prazo. Isto requeria uma gestão urbana mais eficiente, redução ou remoção dos subsídios e cobrança dos custos de dotação de serviços e infra-estrutura (Jones e Ward 1994). Neste contexto de reforço institucional e de descentralização da tomada de decisões, nos níveis subnacionais e locais, as principais políticas dirigidas aos assentamentos irregulares foram, e continuam sendo, dotar de serviços e infra-estrutura os assentamentos irregulares e regularizar a posse de terra, muitas vezes contando com isto, e com o apoio econômico de agências multinacionais como o Branco Interamericano de Desenvolvimento. O importante é que esta segunda geração de políticas públicas se apresenta em um momento em que se incentiva a sustentabilidade fiscal, a colaboração do setor público com o privado para realizar projetos conjuntos, o apego ao planejamento urbano, etc. Estas duas gerações de políticas públicas formavam as bases da política habitacional no Brasil a partir dos anos 1970 até os dias de hoje. Pelo que se pode ver, é muito provável que as mesmas políticas públicas continuem em toda a América Latina, pelo menos durante a próxima década.
Apesar dos avanços conquistados na segunda metade do século XX, agora é urgentemente necessária uma nova fase de investigação, de abrir novos campos de conhecimento, da formulação de políticas públicas e iniciativas no âmbito da normatividade. É imprescindível contar com uma “nova geração” de conhecimentos que também se encontre imersa no paradigma da sustentabilidade e instrumentação dos governos locais.
Os primeiros assentamentos irregulares periféricos são agora urbanizações populares que se encontram no interior das metrópoles. Apesar da sua presença nas cidades ao longo dos últimos 20 anos, em algumas delas desde os anos de 1950, pouco se sabe dos processos que tem tido lugar em seu interior. Por isto, é imperioso explorar qual o impacto nestas áreas devido à pressão na mudança do uso do solo como resultado da globalização (deslocamento), da reestruturação econômica (migração), da transição demográfica (envelhecimento), da inevitável deterioração da habitação depois de anos de intenso uso e do relativo esquecimento em que se encontram por parte das políticas públicas.
Na América Latina, e outros países em desenvolvimento, aqueles assentamentos irregulares que se viam em permanente construção se encontram praticamente consolidados. Depois de décadas de trabalho individual, familiar e comunitário, as moradias, e os assentamentos mesmos, têm se transformado substancialmente. A maioria conta com todos os serviços, ruas pavimentadas, casas finalizadas com materiais permanentes de dois e até três pisos. Sem dúvida, nesta sessão livre argumenta-se que esta situação é ilusória. Apesar de sua aparente integração espacial e física, estes assentamentos requerem atenção e apoio de políticas públicas para sua renovação, uma vez que, se em sua origem não foram vizinhanças pobres, no futuro poderiam chegar a ser – como é o caso das vizinhanças em alguns dos centros urbanos.
Na maioria das vezes, muitos dos problemas que se apresentam nestas áreas se devem ao fato de que as moradias foram construídas paulatinamente, conforme crescia a família e os recursos disponíveis. As casas autoconstruídas e de baixo custo, contaram com pouco ou nenhum apoio técnico para sua construção, carecendo de uma de um plano geral para os assentamentos, e de projetos arquitetônicos para as casas. Em sua ampla maioria, nesses assentamos não são cumpridos os padrões aceitáveis de segurança e de habitabilidade. Embora estas condições se mostrassem úteis no momento de suas instalações, podendo estar úteis até o presente momento, depois de 20 anos ou mais, mesmo assim, as construções apresentam níveis de deterioração. Consequentemente, em alguns casos, como o de Caracas e da Cidade do México, as fortes chuvas e terremotos causaram grandes tragédias quando estas estruturas, precariamente construídas e arruinadas, desmoronaram. Poderíamos dizer que, ao menos em parte, estes problemas foram o resultado de uma falta de manutenção e de intervenção pública para detectar os potenciais problemas do parque habitacional destes assentamentos antigos. 
Durante os últimos 20-50 anos, a composição social dos assentamentos e domicílios também têm mudado significativamente. A densidade da população tem aumentado, os usos do solo e a posse de terra têm se diversificado. Quando muitos dos residentes pioneiros permanecem em suas casas originais, a estrutura e tamanho do domicílio ou grupo social que o habita já não corresponde com a transformação que tem sofrido a moradia ao longo dos anos. Inclusive, tem se levantado que estas áreas residenciais representam um nicho de moradia para alguns dos grupos mais vulneráveis, como são os domicílios encabeçados por mulheres, pessoas da “terceira idade” e outros que fazem parte dos chamados “novos pobres”. Todos eles cada dia mais excluídos da economia e dos apoios de bem-estar públicos e privados (LARR, 2004). Em suma, além de apresentar problemas de construção, estas casas são anacrônicas, uma vez que não cobrem as necessidades do espaço requerido atualmente por seus ocupantes (Ward et al, 2011).
Estes estudos contribuirão de maneira substancial à geração de conhecimento científico sobre a temática da moradia dirigida à população de baixa renda. Seus resultados se articularam com os debates sobre a organização dos domicílios, as “estratégias de sobrevivência” em comparação com as propostas sobre a “nova pobreza” e o impacto que tem as mudanças econômicas na inversão que se faz na moradia. Mais especificamente, esta investigação oferece conhecimentos úteis para o desenho de políticas para a renovação das casas e dos assentamentos irregulares antigos, agora consolidados.

Publicado
2018-11-20
Seção
Sessão Livre