SL - 43 PLANEJAMENTO E CONFLITO: EXPERIÊNCIAS DE PLANEJAMENTO URBANO EM CONTEXTO DE CONFLITOS SOCIAIS

  • Fabrício Leal de Oliveira
  • Gabriela Leandro Pereira
  • Lúcia Capanema Álvares
  • Regina Bienenstein
  • Ana Cláudia Rocha Cavalcanti
  • Carlos Bernardo Vainer
Palavras-chave: planejamento conflitual, política urbana, conflitos sociais, conflito social, planejamento, espaço urbano

Resumo

É pelo conflito que estudamos a cidade em sua potencialidade. É através das relações conflituosas que os grupos urbanos, em função da diversidade e heterogeneidade, pressupostos da condição urbana já destacados pela sociologia de Chicago, expressam a multiplicidade de gramáticas sociais que constituem um vigoroso campo de análises dos estudos urbanos comparados. A origem dessa abordagem pode ser creditada à sociologia de Simmel (1955) que, em resposta aos teóricos da harmonia (por exemplo, Durkheim), rompe com a noção polarizada entre o conflito e a ordem enquanto categorias de entendimento radicalmente opostas e excludentes. O conflito social, já dizia Simmel, é um dos vários tipos de interação social, de associação.
O conflito é um importante indício de vitalidade social. E a sua negação é a indiferença, e esta é, ainda para Simmel, a ausência da sociabilidade. A diversidade e a diferença que caracterizam as cidades produzem e evidenciam, também, a existência das interações conflituais. Os conflitos urbanos possuem intensidades e modulações variadas. São os atores, objetos e objetivos de conflitos, temporalidades, formas, geografias, retóricas e simbologias que oferecem um quadro complexo e diferenciado da cidade. Como e onde se manifestam os conflitos? Que reivindicações, anseios e frustrações traduzem? Que tensões entre grupos e indivíduos trazem à luz? De que maneira a desigualdade sócio-espacial se expõe a partir de informações sistemáticas sobre conflitos? Movimentos sociais organizados e manifestações de multidões, ações coletivas na justiça ou abaixo-assinados, conflitos de vizinhança, inúmeras são as formas através das quais a cidade explicita sua urbanidade, sua diversidade e desigualdade e, mais do que isso, elabora as formas de enfrentá-las. Dito isso, é possível afirmar que a identificação, o mapeamento e a análise da conflituosidade nas cidades são chaves fundamentais para o entendimento da realidade e dinâmica das cidades e um rico material a ser explorado em estudos comparados.
O conflito social, além de ser uma importante chave para estudos urbanos, pode oferecer formas alternativas de intervir nos espaços urbanos através de políticas, planos e projetos. É que realizaram algumas comunidades populares de cidades como no Rio de Janeiro, a comunidade Vila Autódromo na elaboração do Plano Popular; na capital baiana, o Plano do Bairro Saramandaia; na Região Metropolitana de Recife, em Pernambuco, e na ocupação Dandara, na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais.
Como sabemos, a formação das cidades brasileiras envolvem narrativas que explicitam os conflitos de interesse e os projetos sobre os territórios urbanos, cujos desfechos concorrem para o aprofundamento das desigualdades sócio-espaciais, como é o caso, por exemplo, das remoções compulsórias das comunidades menos favorecidas. As desigualdades de poder, as diferenças de posição social e os recursos que têm disponíveis, não apenas deflagram disputas, como também permitem a formulação de gramáticas sociais, códigos, princípios de justiça e complexos conteúdos de justificação que, mesmo com dificuldades, se inscrevem na arena pública acionando antagonistas e atribuindo responsabilidades (Werneck, 2012).
Os moradores desses bairros populares, a partir da confrontação diária com as situações de carência, precariedade e de invisibilidade aos olhos do Estado e espaços de decisão, envolvidos nas situações de conflito, elaboraram a formulação de denúncias, justificações e projetos urbanos. Na formulação desse frame é que se desenvolvem formas contra-hegemônicas de planejamento que resignificam, portanto, do ponto de vista teórico-conceitual, as metodologias e as práticas da ação planejadora em sua expressão dominante. O domínio cognitivo da enunciação do projeto para o bairro onde moram, ou onde planejam morar, é ancorado na experiência diária de moradores que, em diálogo com os técnicos e especialistas, de formação interdisciplinar, realizam o processo de “dupla hermenêutica” das lógicas produzidas pelos moradores.
A conflituosidade urbana é acionada enquanto fundamento e é a partir dela que pode emergir um novo sujeito planejador: popular, coletivo e que se constrói na prática mesma do conflito e do planejamento.
A diversidade ordena, nesse sentido, a ameaça ao entendimento de uma cidade única, formada por interesses integradores e universais. Assim, o conflito social coloca em dúvida a lógica universal da razão entre os discursos (Ranciere, 1996). Partindo do princípio que as experiências realizadas pelos grupos no tecido urbano não são as mesmas, bem como as posições dos atores, seus projetos para a cidade também não o serão.
Os discursos hegemônicos evocam, de maneira recorrente, a legitimidade dos espaços de participação. Estes processos ditos participativos, no entanto, apontam para a mediação e contorno do conflito social, sempre percebido, quando não conceituado, como disfunção, patologia social a ser extirpada, sob risco de contágio, de metástase. Os conflitos ameaçam a cidade onde se partilham projetos comuns, escorados, quase sempre, na utopia de uma sociedade urbana harmônica. A pax urbana, que já foi a imagem projetada pela cidade igualitária dos socialistas utópicos, transforma-se, agora, na imagem da cidade negocial, competitiva, pátria urbana unificada na guerra entre cidades para atrair capitais, megaeventos e turistas. As articulações simbólicas responsáveis pela noção de coesão-urbana revelam a dimensão negocial, na medida em que a pretensão da comunalidade de projetos e sentimentos é convertida em atributos para a condição de “cidade-empresa” onde o potencial competitivo submete a dimensão política da cidade, em outras palavras, onde a city submete a polis (Vainer, 2000).
E é a partir do conflito social que se desdobra nas cidades as formas de construção alternativas de planejar os territórios urbanos que a presente proposta deseja desenvolver. Com base no acúmulo de literatura já existente sobre as formas de planejamento participativo, que não se limitam apenas ao planejamento urbano (Vainer, 2003), as reflexões que orientam as formulações teórico-metodológicas dos modelos de planejamento, os limites e as possibilidades das experiências nos diferentes contextos serão a ideia regente das discussões apresentadas nesta sessão livre.
Além da crítica ao planejamento orientado à lógica do mercado global em que as cidades são travestidas em mercadorias, na esteira do planejamento alternativo, se faz a crítica à autoridade dos especialistas e da ciência da definição dos espaços urbanos. O papel dos especialistas em planejamento neste processo é, também, alvo de tensões e questões. Armados com as críticas ao planejamento hegemônico, e tomando partido dos que estão em desvantagem nas situações de conflito, essa nova modalidade (técnica) de planejamento, que é, ao mesmo tempo, instrumento de luta, realiza uma nova interlocução de saberes e das práticas dialógicas entre os envolvidos no processo, visando garantir a autonomia dos planejadores coletivos.
A diversidade de molduras no que se refere às formas de pensar e intervir nos territórios demonstra as tensões internas ao campo do planejamento urbano e regional. Que, guardadas as diferenças entre as modulações, buscam constituir formas de conhecimento a partir das relações de conflito e, principalmente, compartilham elementos que centralizam o processo de constituição do sujeito coletivo que planeja ao mesmo tempo em que se afirma como sujeito no conflito.
Em síntese, ao reunir diferentes experiências localizadas, a sessão pretende explorar e discutir as possibilidades e limites de um planejamento insurgente, conflitual, que reconheça na luta dos subalternos um instrumento do planejamento, e, no planejamento, um instrumento da luta.
A sessão terá apresentações de professores e pesquisadores de quatro instituições: Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade Federal de Pernambuco. 

Publicado
2018-10-19
Seção
Sessão Livre