SL - 18 SAUDADES DA CIDADE

  • Robert Moses Pechman
  • Ana Fernandes
  • Fernando Augusto Souza Pinho
  • Durval Muniz de Albuquerque Júnior
Palavras-chave: Cidade, Representações, Saudades

Resumo

Segundo Baudelaire, mais muda uma cidade que o coração de um homem. O poeta ecoava o que Marx vaticinara sobre a sociedade capitalista: “tudo que é sólido desmancha no ar”. As cidades antigas, submetidas às reformas, literalmente desmanchavam no ar, com a derrubada das velhas muralhas medievais aonde se rasgariam largos bulevares onde antes, acanhadas ruelas, serpenteavam como num labirinto. Se Marx louvava a ruptura com as tradições, o poeta Baudelaire, embora não escondesse o seu entusiasmo com a modernidade, procurava dar conta das radicais transformações da cidade de Paris com as reformas de Haussman, a partir da melancolia do ‘flâneur’, que vê a cidade acelerar o seu ritmo, sem conseguir/querer acompanhá-lo. A transformação da cidade sempre repercutiu severamente na alma humana, pois é notório que quando começamos a estranhar o presente, basta com olhar para a cidade para constatar o quanto ela mudou. A literatura inglesa do século XIX, diante de uma Londres com todos os males da industrialização, não cessa de evocar a harmonia dos campos e manifestar o desejo de construir Jerusalém na terra inglesa, construir a cidade santa em oposição à cidade ímpia. Entre nós a transformação de nossas capitais – lembremos Levy Strauss da São Paulo que passa da infância à decadência sem experimentar a juventude – muitas vezes tem sido tão arrebatadora, que pouco resta para se contar a história. No Rio de Janeiro, Vinícius de Morais, diante das mudanças pelas quais Ipanema passava nos anos 70, na música “Carta ao Tom, lamentava: “Ai que tempo feliz, ai que saudades, Ipanema era só felicidade...”. O cronista mineiro Paulo Mendes Campos, há longo tempo vivendo no Rio, contabilizando a perda de seus referenciais diria: “ Uma das nossas contradições fundamentais é a gente desejar viver na cidade grande e levar no inconsciente a intenção de criar em torno de nós a aldeia natal”. Em Belém, há poucos anos atrás, a Prefeitura reeditou o bonde tentando resgatar algo da cidade da Belle Époque. Nesta capital a evocação de sua idade de ouro se tornou estratégia fundamental na legitimação de importantes renovações urbanas. Na Bahia, exaltada por Caymi de “Ai que saudades que eu tenho da Bahia”, é certamente de Salvador que se tem saudades, quando já ele morava no urbanizado Rio de Janeiro. Caymi canta que se tivesse escutado o que a mãe dizia não teria caído nesse mundo “cheio de maldades e ilusão” que era o da capital da república. Saudades, portanto da sua Salvador tão familiar. Do outro lado do oceano, em Portugal, o poeta Cesário Verde, no século XIX, com o crescimento e as transformações de Lisboa, dedica sua poesia à nostalgia da antiga paisagem da capital que ia desaparecendo com a modernidade. Nesse sentido o que teríamos em comum, entre essas formas de narrativa da experiência urbana, seria a tentativa de elaboração dessas perdas a partir do que se convencionou chamar “saudade”. Sintomaticamente, no entanto, a Saudade, foi sempre entendida como algo da ordem da subjetividade e fazendo parte, exclusivamente, do mundo dos afetos, portanto, infensa à uma análise histórica e, fundamentalmente, próxima do mundo da ficção. Assim sendo, tal fenômeno pouco serviria à compreensão dos processos de transformação da cidade com seu cabedal de perdas materiais. E é exatamente ali aonde dói, é precisamente ali onde a paisagem é destruída e uma nova imagem e um outro imaginário se impõem à cidade, que nos sentimos despossuídos e o mundo parece perder o sentido, que as saudades clamam reclamando e cobrando perdas. E, no entanto, do que se trata aqui é retirar a Saudade dessa dicção e pensá-la como fenômeno histórico e social e, principalmente, como fenômeno assaz consistente para a compreensão dos impactos das transformações da cidade nos processos de subjetivação dos homens. Trata-se aqui, pois, de “objetivar” o que sempre foi pensado como “subjetivo”. A saudade parece ser um sentimento universal inerente a todos os humanos, mas na verdade ela se define histórica e culturalmente, à medida mesmo que nós não temos saudades das mesmas coisas, que cada tempo manifesta as saudades de formas muito singulares e que nem todas as culturas valorizam este sentimento ou dão a ele o mesmo conteúdo e sentido. Assim sendo exercitamos arrancar a Saudades de seu chão para analisar suas raízes e dela dizer algo que a objetive como um “novo” discurso sobre a cidade. Sabemos que a palavra saudade só existe nas línguas galega e portuguesa, o que é bastante sintomático de uma forma de sentir e por consequência de ver e agir no mundo. A Saudade como discurso emerge em Portugal no século XV e se consolida no início do século XIX como um definidor da alma portuguesa e, por extensão, também da alma brasileira. Saudade como uma forma de ler o tempo, o espaço e suas histórias. Saudade como uma reação contra a mudança trazida pelo tempo e a tentativa de “resgatar”, seja uma certa sociabilidade, seja uma certa vivência. O saudosismo sendo uma relação de estranhamento e negação do presente e estando sempre ligado à construção de um futuro que reinstale as formas perdidas. Procuramos, assim, privilegiar algumas “regularidades” nos estudos sobre a Saudade, a saber: sua emergência em Portugal no século XV e sua consolidação no início do século XIX e seu importante papel na própria definição da nacionalidade portuguesa. Sua “disseminação” no Brasil no início do século XIX e XX, a partir das transformações urbanas das capitais. Privilegiaremos também a Saudade como sentimento, mas nem por isso como algo “natural” e a-histórico, mas sim como uma reação cultural, social e histórica às transformações experimentadas na cidade e na sociedade. Sob uma perspectiva multidisciplinar, a mesa proposta vai se debruçar sobre a temática “Saudades da cidade” através de dois planos de análise que se entrecruzam: (1) a reflexão sobre o mito do lugar instaurado pela saudade de um tempo perdido; (2) as saudades como uma maneira de criticar um presente que foi se tornando cada vez mais banal frente a outras experiências onde a cidade ainda era uma promessa de feliz-cidade. 

Publicado
2018-10-17
Seção
Sessão Livre