SL - 15 CARTOGRAFIA SOCIAL E ESTRATÉGIAS DE TERRITORIALIZAÇÃO

  • Henri Acselrad
  • Alfredo Wagner B. de Almeida
  • Charles Hale
  • João Pacheco de Oliveira
  • Henri Acselrad
Palavras-chave: Cartografia social, processos de territorialização, direitos territoriais

Resumo

O mapeamento de áreas protegidas e terras tradicionalmente ocupadas para a garantia de posse, manejo de recursos naturais e fortalecimento de determinadas culturas é fenômeno recente que tem envolvido diversas instituições e grupos sociais. Uma literatura recente tem designado por “virada territorial” o processo de demarcação e titulação de terras envolvendo, a partir dos anos 1990, comunidades e povos tradicionais na América Latina, processos estes frequentemente associados a experiências de chamados mapeamentos participativos ou de cartografia social. Verificou-se aí uma quebra do monopólio estatal na produção de mapas, com a instauração de uma espécie de “insurreição de uso” (Lefebvre) dos mapas associada a reclamos por representação e produção de novos territórios. A difusão da cartografia social na AL está associada a i) processos jurídicos – como a ratificação da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas em 1989 e sua incorporação a muitas reformas constitucionais na região desde 1990; ii) à dinâmica de auto-organização destes povos em movimentos e em alianças (parte delas, com entidades ambientalistas); iii) às possibilidades das novas tecnologias geomáticas. Os novos mapas afirmam territorialidades e disputam poder, o que permitiu o geógrafo Nietschmann sustentar que “mais território indígena foi recuperado na ponta de mapas do que de armas”.
Dadas tais disputas cartográficas, qual o diagrama de forças que se desenha sob o lema da chamada “virada territorial”? No que diz respeito ao Estado: verifica-se que, a partir dos anos 1990, um movimento de transferência de arranjos institucionais e redes econômicas para escalas supra-nacionais e sub-nacionais: enquanto pressões eram exercidas para expandir as fronteiras territoriais do mercado e políticas de resistência exprimiam um militantismo baseado na identidade e na diferença. Acirraram-se as tensões entre grandes projetos de desenvolvimento - agro-industriais, energéticos e minerários – e os modos de vida, as condições de acesso a terra e a recursos por parte de povos indígenas e tradicionais. As práticas da cartografia passaram a ser pressionadas configurando nos termos de Edward Said, “batalhas complexas desenvolvidas não com soldados e canhões, mas com idéias, formas, imagens e imaginários”. Às disputas de poder sobre os territórios somam-se as disputas de poder sobre os mapas, ou melhor, através de mapas.
No que diz respeito aos sujeitos da cartografia social, tais experiências estão em geral associadas à distinção política e analítica entre demandas por terra e demandas territoriais. Considera-se que uma demanda por terra não desafia, necessariamente, as regras e regulações com que se administram os direitos à propriedade, enquanto uma demanda territorial, ao contrário, evoca questões de poder, de afirmação de identidade, de autogestão e controle dos recursos naturais. Uma demanda territorial busca, assim, redefinir a relação dos grupos com o Estado. No caso brasileiro, tanto o campesinato empurrado para a frente de expansão na Amazônia como aquele expropriado no plantation do Nordeste engajam-se num nominalismo identitário e “territorial/cartográfico”, renomeando/simbolizando espaços correspondentes às suas territorialidades ou dando nome ao que a linguagem cartográfica oficial não nomeia. Em muitos destes casos, argumentos distributivos universalistas associados a demandas por terra são duplicados ou substituídos por argumentos de reconhecimento de particularidades étnicas e territorialidades específicas. Diversos grupos adotam, assim, ações coletivas sob a forma de “lutas territoriais”, emprestando, com freqüência, elementos das experiências da territorialização indígena para propor novas formas institucionais, como foi o caso das RESEX, por exemplo. O mapa aparece também como um instrumento de entrada no espaço público, através de estratégias que constroem o que se quer mostrar no espaço e não apenas “exibem o que estava obscurecido”. Em muitos casos, em função das condições do conflito ou de sua iminência, abandonam-se estratégias de invisibilidade e passa-se à produção de uma determinada visibilidade, que inclui aquela de territorialidades específicas.
No que diz respeito especificamente aos povos indígenas, a politização de suas lutas levou a que certos grupos passassem a se apropriar dos instrumentos operados até então pela dominação, como os mapas, configurando aquilo que Sahlins chamou de indigenização da modernidade. Pacheco de Oliveira (2006) já havia ressaltado como, no caso da demarcação das terras indígenas no Brasil, deu-se um processo de politização das práticas de apropriação territorial, abandonando-se as rotinas estabelecidas pelo indigenismo, que sempre entendera a demarcação como um procedimento fundamentalmente técnico, O caráter político ao qual se subordinam as técnicas de representação do território para fins de delimitação e demarcação de terras indígenas esteve obscurecido até 1995, quando demarcações ditas “participativas” no Brasil foram avaliadas como capazes de fortalecer as organizações indígenas e construir “uma realidade socio-política na qual um sujeito histórico entra em um processo de territorialização e passa a ser reconhecido, sob uma modalidade própria de cidadania, como participante efetivo da nação brasileira” (Oliveira, 2006:174-175). Mac Chapin, antropólogo e ativista norte-americano que esteve presente no começo das experiências de mapeamento de terras indígenas na América do Norte admitiu que se havia desprezado inicialmente “as profundas implicações políticas do mapeamento territorial”, e que foi surpreendente a forma acelerada em que os povos indígenas começaram a obter vantagem do etnomapeamento. O que havia começado como um exercício acadêmico na cartografía ambientalista, rapidamente se metamorfoseou em uma forma de cartografía política.
No que diz respeito às instituições multilaterais, cabe observar que a maior parte dos territórios reivindicados encontra-se situada em regiões onde se localizam as principais reservas de biodiversidade restante no planeta, além de outras riquezas inexploradas. O Banco Mundial tem afirmado que o fato das terras reclamadas por povos indígenas e tradicionais serem devolutas é um grande obstáculo para atrair investimentos privados. Esta instituição multilateral teria visto na titulação territorial um passo para estabilizar os regimes de propriedade e atrair tecnologias apropriadas a áreas de alta biodiversidade. Tem-se chamado de multiculturalismo neoliberal o apoio pró-ativo que certos agentes da liberalização econômica têm dado a demandas limitadas dos movimentos indígenas como forma de fazer avançar a sua própria agenda (Hale, 2006). Reformulando as demandas na linguagem de sua contenção, o Banco apresentar-se-ía como sujeito da definição do espaço ocupado pelo o ativismo dos direitos culturais, assim como dos limites da legitimidade de cada uma de suas demandas e da ação política apropriada para atendê-las. Tal hipótese é compatível com a idéia segundo a qual “o projeto neoliberal não trata apenas de políticas econômicas ou de reforma do estado, mas inclui políticas de ajuste social informadas por um projeto cultural”, através do qual “até os aborígenes mais remotos, após serem descobertos, são postos em um ´sítio`, em um duplo sentido: a globalização os situa e ao mesmo tempo os sitia” (Llorens, 1999, apud Assies, 2003, p. 3)
Boltanski e Chiapello chamam de “deslocamentos” às mudanças organizativas ou de critérios de alocação social, efetuadas em termos de força ou legitimidade, pelas quais o capitalismo assegura continuidade a seus próprios mecanismos. Os deslocamentos são, pois, procedimentos de mudança do lugar/condição social do enfrentamento crítico, que permitem evitar perdas de superioridade relativa dos atores dominantes e atribuir-lhes forças derivadas de novas circunstâncias. O acúmulo e a força das críticas podem levar a deslocamentos que consistem na busca de novos mecanismos concretos de seleção e de sua justificação – mais robustos, estáveis e formalizados. Os processos de ambientalização e “culturalização” do Estado e das agências multilaterais como o Banco Mundial ilustram, efetivamente, um processo de “deslocamento” desta ordem, pela institucionalização da crítica ambientalista no seio do projeto de modernização ecológica, e da resistência indígena e quilombola, por via da “virada territorial”, tendo em vista a sua contenção. Tal processo tem sido, sem dúvida, tensionado permanentemente pela emergência de novos atores, que, ao lado de populações indígenas e quilombolas, se apresentam como sujeitos de direitos territoriais específicos, recorrendo ao uso de seus próprios mapas em nome de sua afirmação cultural, política e ambiental.
A presente Sessão Livre pretende discutir em que medida a demarcação das “terras tradicionalmente ocupadas” tem criado constrangimentos ao avanço das fronteiras da acumulação e das agroestratégias do capital na América Latina, assim como em que medida a afirmação do modelo de desenvolvimento neo-extrativista no continente pode estar ameaçando as conquistas já obtidas.  

Publicado
2018-10-17
Seção
Sessão Livre