SL69 Novas considerações sobre uma velha modalidade de moradia

  • Lilian Fessler Vaz
  • Luciana da Silva Andrade
  • Juliana Canedo
  • Helena Rosa dos Santos Galiza
  • Maíra Machado Martins
  • Diana Bogado
  • Maria Lais Pereira da Silva

Resumo

SL-69. Novas considerações sobre uma velha modalidade de moradia

Coordenadora: Lilian Fessler Vaz (UFRJ)

Resumo:

Dentre os fenômenos urbanos relativamente recentes, procuramos nesta Sessão Livre destacar o das ocupações de imóveis vagos por grupos sociais de sem teto, quer seja nos centros das cidades ou nos seus entornos, quer seja em subúrbios imediatos, periferias próximas ou mais distantes. Os processos relacionados a estes movimentos envolvem, por um lado, o “esvaziamento” e a degradação física de prédios inteiros, resultantes de seu abandono, muitas vezes devido a políticas de modernização urbana que historicamente privilegiaram intervenções para demolição do casario antigo e/ou tradicional e para a progressiva verticalização da cidade. Segundo Mauricio de Abreu (1987), na cidade do Rio de Janeiro este processo foi de tal modo intenso, que resultou em uma verdadeira “depuração sócio espacial” da sua área central. Vários outros autores analisaram as suas consequências: a criação de “vazios”, a degradação e a precarização dos imóveis “sobreviventes”, constantemente ameaçados por novas políticas de “terra arrasada”, conforme as políticas vigentes e as injunções do mercado.

Um segundo processo se verifica no entorno da área central, nos bairros e mesmo em subúrbios mais distantes: o da progressiva desindustrialização em algumas metrópoles, que levou ao abandono – seja por falência, devido às crises econômicas cíclicas, seja por deslocamento territorial das indústrias em busca de melhores situações – de grandes galpões, instalações e edifícios administrativos que ficaram “ao longo do caminho” constituindo blocos de estruturas sem uso. Assim é que as cidades viram surgir um imenso conjunto de imóveis vagos, sem função social, sobras das (perversas) transformações sofridas. No caso do Rio de Janeiro, o censo demográfico de 2010 indicou um total de 193.682 imóveis vagos no município, sendo o número dos “não ocupados” o que mais aumentou, espalhados não só na área central, como nas demais zonas da cidade (PMCRJ, Armazém de Dados, 2011). Por outro lado, essas intervenções e processos deslocaram/expulsaram os grupos sociais mais pobres que, numa movimentação também histórica e contra-hegemônica, reagiram à espoliação de seus territórios e buscaram outras modalidades de moradia, fazendo crescer as favelas e os loteamentos periféricos e surgir as precárias ocupações.

Nas décadas mais recentes acentuou-se a crise habitacional, e observou-se uma situação eivada de contradições: de um lado, a grande dimensão do déficit habitacional brasileiro, de ordem de cerca de seis milhões de unidades (IBGE/PNAD/FJP, 2012). No Município do Rio de Janeiro, foi computado um déficit de cerca de 286.340 unidades habitacionais, sendo 64% na faixa dos domicílios da população mais pobre, cujos rendimentos não excedem três salários mínimos mensais (SANTOS, 2011). A este déficit contrapõe-se uma política de ínfima produção habitacional para esta faixa (apesar do volume imenso de investimentos), focada na produção de conjuntos habitacionais que apresentam problemas nas mais diversas dimensões: de arquitetura, de localização, de construção, de urbanismo, de infraestrutura, etc. Neste quadro, a presença de imóveis vagos, em áreas centrais (ou não) assume um significado extremamente importante como possibilidade de oferta de moradia para o contingente populacional “expulso” (“removido” com violência ou não), e que – apesar de assinalado/registrado/proposto como solução no Plano Nacional de Habitação lançado em 2008 – não mereceu um efetivo planejamento e nem ações sistemáticas locais, estaduais ou nacionais por parte do poder público no sentido de viabilizar uma possibilidade real de habitação de interesse social.

No campo relativo aos grupos sociais e movimentos dos “sem teto”, a sua ação – que de resto ocorre globalmente – é a de ocupar esses imóveis (públicos ou privados), como se indicou antes, nos centros e/ou nas suas periferias. Observe-se que o que é visibilizado (com o farto apoio da mídia) são os conflitos que tem ocorrido em relação aos “despejos” das famílias dos imóveis ocupados; despejos com o uso da lei e alicerçados em processos extremamente violentos, quer sejam pelas armas (são inúmeros os casos de desocupações que utilizam de forma violenta a ação da polícia, com a destruição sumária de pertences dos moradores), pela “ideologia” (neste caso, nos reportamos à desocupação da Torre de Davi, no centro de Caracas, Venezuela), ou mesmo pelo convencimento de lideranças e moradores sob ameaças (como no caso de retirada de um conjunto recém construído no bairro de Guadalupe no Rio de Janeiro, que embora fuja um pouco da questão do imóvel vago, mas dá mais uma medida da carência habitacional).

O poder público, por sua vez, em alguns momentos não reage em relação às ocupações, como no caso de diversas fábricas ocupadas na Avenida Brasil, no Rio de Janeiro. Noutros momentos apresenta ações pontuais, irregulares, e, com raríssimas exceções, propostas como o Programa “Novas Alternativas”, também na mesma cidade, que caem num cipoal de burocracias, de problemas fundiários e mesmo da falta de recursos maiores, tendo em vista verbas irrisórias para o planejamento e a implementação deste tipo de programa, que não representa, evidentemente, a prioridade dos governos.

Essas são ações que têm sido reportadas com insistência nas diversas mídias. O que é mais raro, entretanto, é a análise das ocupações, cujas populações moradoras conseguem manter uma certa permanência nesses imóveis, subordinando-se à poderes locais, estruturando-se enquanto movimento, e/ou tendo apoio desses movimentos e de profissionais que dão um certo suporte, muitas vezes de caráter técnico. Pode-se pensar, como hipótese, com base em alguns casos, que o tempo de permanência das ocupações varia, assim como as formas de estruturação interna, e de obtenção de recursos para projetos e melhorias. Algumas ocupações apresentam objetivos que se colocam além do acesso a uma moradia digna. Obedecem, portanto, a contextos diversos, que podem evidenciar diferentes modalidades de “ocupar”, e que permitem refletir sobre as possibilidades de se desenvolver, a partir destes estudos, novas formas de planejamento e novos programas habitacionais. Trata-se de inverter a perspectiva corrente. Na atual, o significado das ocupações é colocado no quadro de uma questão de caráter jurídico (a infração à propriedade) ou como uma “questão de polícia” (a “desordem”). A inversão seria, na verdade, considerar as ocupações – resistentes a uma espoliação de seus direitos e insurgentes quanto à não oferta de soluções dignas – como novas modalidades de acesso à cidade, e que apresentam inovações e novas propostas para um planejamento que seja inserido num quadro de justiça social.

Exposição: Estratégias veladas de segregação: uma discussão sobre moradia popular e o papel do arquiteto

Expositoras: Luciana da Silva Andrade (UFRJ), Juliana Canedo (UFRJ)

Resumo: Buscamos analisar as ocupações de edifícios históricos abandonados no centro da cidade do Rio de Janeiro, pela população de baixa renda, para fins de habitação. No cerne desta discussão estão as questões relativas ao direito à moradia digna (Bonduki, 1999), à cidade (Lefebvre, 2011 [1968]) e, também, à questão da preservação do patrimônio histórico. É a partir do conflito entre estes elementos que pretendemos desenvolver o debate. Esta análise será feita através da ótica da atuação do arquiteto/urbanista, buscando identificar de que forma este profissional pode atuar para auxiliar o acesso à moradia digna, minimizando riscos e potencializando soluções, e ao mesmo tempo compreendendo as questões pertinentes à preservação de edifícios históricos relevantes para a cidade. Como eixo condutor do trabalho, analisaremos o caso da Ocupação Colonial, um edifício preservado pelo Patrimônio Público Municipal, situado na Lapa, região valorizada do centro da cidade. Parte dos moradores desta ocupação encontra-se atualmente sob ameaça de remoção por conta de um acréscimo realizado para viabilizar a moradia de 14 famílias e que implicou uma alteração na fachada preservada. Portanto, a discussão acerca do embate entre o patrimônio e o direito à cidade se faz fundamental. A questão da memória no espaço construído revela também as próprias contradições e diferenças espacializadas na cidade. Como a memória está ligada ao sentido, ao significado, ela é também particular para cada indivíduo e/ou grupo de indivíduos. É necessário, portanto, debatermos que patrimônio é este que queremos preservar: por quem e para quem preservar.

Exposição: De ocupação a moradia digna no Rio de Janeiro

Expositora: Helena Rosa dos Santos Galiza (UFRJ)

Resumo: O Projeto Moradia Digna nas Áreas Centrais iniciou-se em 2003, quando eram raros os casos de recuperação de imóveis com permanência dos seus moradores nos centros. O projeto teve sua origem na observação sobre a paradoxal diferença entre discurso e prática das instituições federais na questão da habitação nos centros. Neste sentido, desenvolveu-se uma pesquisa-ação, com o envolvimento de profissionais de várias áreas, para valorizar um imóvel sem provocar a expulsão de seus moradores pobres. Eram nove famílias de condições precárias que moravam em um prédio público degradado, construido no final do século XIX e situado no centro da cidade do Rio de Janeiro. A principal premissa era viabilizar a reforma do prédio e a permanência daquelas famílias, a maioria constituída de trabalhadores informais. Assim necessitava-se garantir a regularização fundiária e a transformação do imóvel em moradia digna. Tais ações se integraram a outras (educação patrimonial e sanitária, terapia comunitária e de geração de trabalho e renda), para promover melhorias nas condições locais. A comunidade participou ativamente de todo o processo e, com a convivência, as entrevistas com cada núcleo familiar e as reuniões coletivas
freqüentes, foi possível esclarecer as necessidades e contribuír para o trabalho de organizar os moradores numa Associação. A solução final foi aprovada pelas famílias e pelos órgãos competentes. Após longos anos de muito trabalho, perseverança e conflitos - 6 anos de negociações e 4 de obras - em novembro de 2012 as famílias retornaram ao prédio.

Exposição: De usinas a “condomínios populares”: reconversões funcionais e espaciais às margens da Avenida Brasil no Rio de Janeiro

Expositora: Maíra Machado Martins (UFF)

Resumo: A partir dos anos 2000, observamos o surgimento de uma forma diferente de moradia popular autoconstruída às margens da Avenida Brasil, antiga via de entrada da cidade do Rio de Janeiro que abrigava as indústrias da cidade. Este tipo de moradia se caracteriza pela ocupação de imóveis e terrenos de uso industrial, abandonados há alguns anos, por moradores de favelas, sobretudo próximas à região. O processo de ocupação dos locais, a reconversão do espaço em moradia e as regras estabelecidas no seu interior fazem as ocupações se destacarem no contexto da habitação popular carioca, podendo ser chamadas de “condomínios populares”. Esta pesquisa questiona as representações deste novo tipo de moradia na cidade contemporânea e na sociedade atual. Para tal análise, é necessário considerar o desenvolvimento territorial da cidade e da favela de origem dos primeiros ocupantes, assim como as diferentes políticas públicas relativas à habitação precária, buscando compreender o significado destes “condomínios populares” e suas relações com o território onde se reproduzem. Observamos desta forma novas reconfigurações no espaço urbano e social desta área da cidade, às margens de uma avenida inaugurada há quase 70 anos, mas informalmente ocupada há mais tempo, segundo relatos e documentos históricos. Este trabalho pretende discutir as práticas do grupo social que forma os “condomínios populares” da Avenida Brasil, tanto no espaço de moradia coletivo quanto no contexto urbano onde se inserem.

Exposição: Movimento “Okupa": resistência e autonomia na ocupação de imóveis nas áreas urbanas centrais

Expositora: Diana Bogado (Universidade de Sevilha; UFF)

Resumo: O fenômeno da "Okupação" apresenta-se como insurgente e resistente diante da atual gestão urbana produtora de desigualdades sociais. No contexto contemporâneo, a ação da sociedade civil organizada culmina em movimentos reivindicatórios por atendimento às necessidades básicas e por qualidade de vida urbana, cujos fenômenos da "Okupação" e da ocupação estão imbricados. Tais movimentos têm obtido êxito, seja pela conscientização da população, seja por pressionar o Estado por políticas públicas de habitação, ou pelas conquistas que determinadas "Okupações" e ocupações alcançam, como resistência às remoções estratégicas das referidas políticas urbanas. Dentre as manifestações sociais recentes que pressionaram os Estados nacionais por cidades mais justas, destacam-se as espanholas 15M, iniciadas em 15 de Maio de 2011, e seus desdobramentos globais, como assistido no Rio de Janeiro desde 2013, consolidando uma rede contra hegemônica de ações inter-relacionadas em escala mundial. As principais diferenças entre o "Movimento Okupa", mais expressivo no continente europeu e os movimentos sociais por habitação, mais comuns no Brasil, são os propósitos da luta e os desdobramentos sociais das ocupações e "okupações", nos quais as primeiras têm como finalidade destinar imóveis ociosos às famílias desabrigadas; enquanto o "Movimento Okupa", com viés mais político, busca essencialmente a conscientização social da produção da escassez e, apresenta formas de vida que a contornam, fundamentadas em ideais anárquicos, principalmente, solidariedade e ilegalidade. As atividades "okupas", diferente das ocupações, não se restringem ao usufruto do imóvel; buscam apresentar novas possibilidades de uso da propriedade e de apropriação do espaço público reivindicando direitos sociais para minorias.

Exposição: Ocupação de terrenos e imóveis vazios – reflexões e questionamentos

Expositor: Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Maria Lais Pereira da Silva (UFF)

Resumo: Pensar em uma parcela de terra urbana vazia e nela se estabelecer ou em partes de edificações sem uso e ocupá-las são ações que vem sendo consideradas de diferentes maneiras, conforme o tempo e o espaço a que se referem. Práticas habituais de 100 anos atrás, como construir barracos em encostas, baixios e terras devolutas, ou como arrendar imóveis desocupados, subdividi-los e alugar cômodos, seriam atualmente pretensões descabidas. No entanto, a ocupação de terrenos e imóveis ociosos, é vista, ao mesmo tempo, como caso de polícia e como necessidade em termos de mobilidade e de funcionalidade urbanas. Os pontos de vista do planejador, do proprietário imobiliário ou fundiário, ou do sem teto são radicalmente diferentes, mas apoiam-se em princípios de justiça: o direito da propriedade versus o direito à cidade e à moradia digna. A diversidade de contextos, iniciativas e modalidades de “ocupação” de terrenos e imóveis, permitem refletir sobre as possibilidades de desenvolver novos programas de habitação e de planejamento, invertendo a perspectiva corrente. Nesta, o significado das ocupações é colocado no quadro de uma questão de caráter jurídico (a infração à propriedade) ou como uma “questão de polícia” (a “desordem”). A inversão seria, na verdade, considerar as ocupações – resistentes à espoliação de seus direitos e insurgentes quanto à não oferta de soluções dignas – como novas modalidades de acesso à cidade, e que apresentam inovações e novas propostas para um planejamento que seja inserido num quadro de justiça social.

Publicado
2019-05-22
Seção
Sessão Livre