SL8 Reforma Urbana, Movimentos Sociais e Planejamento:

Opções Políticas e Limites em Face da Crise Urbana.

  • José Ricardo Vargas de Faria
  • Ramon José Gusso
  • Maria de Fátima Tardin Costa
  • Marcos de Faria Asevedo
  • Frederico Lago Burnett
Palavras-chave: reforma urbana, movimentos sociais, planejamento urbano, crise urbana

Resumo

SL-08. Reforma Urbana, Movimentos Sociais e Planejamento: Opções Políticas e Limites em Face da Crise Urbana.

Coordenador: José Ricardo Vargas de Faria (UFPR)

Resumo:

As organizações e os movimentos sociais ligados à reforma urbana constituem, pelo menos discursivamente, uma das principais forças na formação do Ministério das Cidades e na formulação da política urbana brasileira, com a capacidade de transformar suas bandeiras históricas, como a gestão democrática e o cumprimento da função social da propriedade, em princípios da referida política. Parte significativa desses movimentos e organizações se articula em torno do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), que é “uma coalizão de organizações que reúne movimentos populares, organizações não-governamentais, associações de classe e instituições acadêmicas e de pesquisa em torno da defesa da reforma urbana, da gestão democrática e da promoção do direito à cidade” (SANTOS JR, 2009, p. 10).

Em que pese os divergentes relatos sobre a formação do FNRU e sem pretender caracterizá-los como elementos de um palimpsesto histórico a que se refere George Orwell (2009), é possível afirmar que “a articulação de movimentos populares e entidades que defenderam a Emenda Popular de Reforma Urbana” (GRAZIA DE GRAZIA, 1993, p.6) esteve em sua origem. A inserção de um capítulo de política urbana na Constituição Federal de 1988 foi influenciada pela participação de entidades de representação profissional, sindicatos, organizações não governamentais, associações de moradores de bairros e de favelas, entre outros articulados sob a guarida da reforma urbana. Nos anos seguintes, essa articulação consolidou-se realizando o I, II e III Fórum Nacional de Reforma Urbana, em dezembro de 1988, 1989 e 1991, respectivamente (GRAZIA DE GRAZIA, 1993, p. 5-9).

Articulados, as entidades e os movimentos ligados à reforma urbana construíram uma agenda centrada em alguns princípios fundamentais: (i) Direito à Cidadania; (ii) Gestão Democrática da Cidade; (iii) Função Social da Cidade e da Propriedade (GRAZIA DE GRAZIA, 1993, p. 284). Além desses pontos, SANTOS JR (2009, p.811) destaca ainda a “municipalização da política urbana [...] e a inversão de prioridade no tocante à política de investimentos urbanos” como elementos fundamentais da agenda da reforma urbana, que vêm sendo construídos desde a década de 1960 e compõem aquilo que o autor denomina um ideário reformista em disputa desde o processo de redemocratização orientado pelo enfrentamento da “espoliação urbana”, em referência a Kowarick (1979, p.59). A incorporação dos princípios propugnados pelo Fórum de Reforma Urbana em diferentes esferas institucionais representaria um esforço de “reconhecimento” (HONNETH, 2003), pois pretenderia, sinteticamente, a afirmação, no arcabouço jurídico-institucional, do direito à cidade aos espoliados urbanos. Nessa perspectiva, o FNRU estabelece um conjunto de ações e estratégias que visam incidir na formulação, na regulação, no financiamento e na gestão de políticas urbanas, incluindo a afirmação de uma perspectiva própria de planejamento urbano.

Para Maricato (2011), esse processo se deu em uma conjuntura marcada pela progressiva “institucionalização” do FNRU com o concomitante abandono da luta anticapitalista. Esse “equívoco”, presente em diversos movimentos, sindicatos e partidos, com destaque para o PT, produziram uma “guinada conservadora” na qual “tudo se passa como se os governos, seguindo as leis e os planos, e formando parcerias, sempre que necessário, pudessem superar problemas que são históricos e estruturais“ (MARICATO, 2011, p.153-9). Maricato (2011) procura articular suas análises ao reconhecimento da existência de um ciclo político da reforma urbana, que teria se iniciado com a “constituição de um vigoroso movimento nacional [...] que unificou as demandas e lutas pelo Direito à Cidade [com a] luta contra a ditadura e democratização do país” e obtido “significativas conquistas” como a “eleição de governos municipais denominados democráticos [...] (a partir dos anos 1980)” e as conquistas legais (Constituição de 1988 e Estatuto da Cidade) e institucionais (Criação do Ministério das Cidades. Esse ciclo começa a entrar em declínio com “a perda de ofensividade e a fragmentação dos movimentos sociais” e a “perda de centralidade da questão da terra urbana” (MARICATO, 2011, p. 9-10). Esse declínio teria início provável na década de 1990 – o desligamento de militantes da reforma urbana posicionados “mais a esquerda”, em 1996, seria expressão desse fenômeno –, mas se acentuado no início do Governo Lula (MARICATO, 2011, p.10 e p.152). Em outras palavras, se por um lado a eleição de governos democráticos e a consolidação dos marcos jurídico e institucional são consideradas como significativas conquistas, por outro a institucionalização é expressão do declínio. Essa aparente ambiguidade poderia ser solucionada com a afirmação de que “não se pretende dar a entender que não há o que fazer além da militância anticapitalista, mas que excluí-la foi o grande equívoco nesse processo todo” (MARICATO, 2011, p.5).

As manifestações ocorridas em todo o país em 2013, que passaram a ser conhecidas como jornadas de junho, foram também apontadas como evidencias deste descolamento progressivo dos movimentos e organizações constituídas neste ciclo anterior em relação às reivindicações atuais e a reconfiguração da questão urbana. A proposta dessa sessão livre surgiu da necessidade de aprofundar esse debate. Explorando as opções políticas, os limites conjunturais e estruturais e os contingenciamentos que instituem o campo de ação e da Reforma Urbana, pretende-se contribuir para a constituição de uma perspectiva crítica sobre o projeto de reforma urbana no Brasil, principalmente nos últimos 20 anos, diante da reestruturação do capitalismo globalizado, através da efetivação de políticas de contrarreformas neoliberais. Evidentemente, a intenção do debate proposto nessa sessão livre não é negar o papel histórico do movimento da reforma urbana, mas, reconhecendo que nas últimas décadas o FNRU se colocou no papel de interlocutor para o debate crítico relacionado à questão urbana no Brasil, instigar o debate sobre em que medida, hoje, tanto o ideário da reforma urbana como as propostas programáticas e as formas de ação dele decorrentes dão conta de permitir vislumbrar a superação das desigualdades sociais da produção capitalista da cidade.

Esta sessão livre dá continuidade à interlocução realizada pelos seus integrantes durante a elaboração de suas teses em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ, em Psicologia Social pela UERJ e em Políticas Públicas pela UFMA e dissertação em Sociologia Política pela UFSC. O campo temático desses trabalhos, teses e dissertação defendidas entre 2009 e 2012, foi o projeto da Reforma Urbana no Brasil e a atuação do FNRU incluindo os processos de formação e reafirmação do seu capital simbólico. O trabalho de Ramon José Gusso analisa a formação do movimento de reforma urbana no Brasil a partir da estrutura de oportunidades que conformou repertórios de ação próprios. Maria de Fátima Tardin Costa interpela o ideário da reforma urbana e sua circunscrição no campo institucional e profissional, apontando seus limites em termos de organização e luta emancipatória. O trabalho de Marcos de Faria Asevedo, referendado em sua militância no campo da reforma urbana, aborda o papel do FNRU na interlocução com o governo federal, especialmente no âmbito do Conselho Nacional das Cidades. Finalmente, os trabalhos de Carlos Frederico Lago Burnett e José Ricardo Vargas de Faria analisam a formação de um discurso de planejamento associado à perspectiva da reforma urbana, propondo aportes críticos, sob diferentes perspectivas, ao caráter ideológico deste planejamento.

Bibliografia

GRAZIA DE GRAZIA (org.) (1993). Direito à Cidade e Meio Ambiente. Rio de Janeiro: Fórum Brasileiro de Reforma Urbana.

KOWARICK, Lucio (1979). A Espoliação Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

MARICATO, Ermínia (2011). O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes.

SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves (2009). O Fórum Nacional de Reforma Urbana: incidência e exigibilidade pelo direito à cidade. Rio de Janeiro: FASE.

Exposição: Hegemonia na contra-hegemonia: o discurso consensual do planejamento urbano politizado

Expositor: José Ricardo Vargas de Faria (UFPR)

Resumo: Com os dez anos de vigência do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/01), o campo político e intelectual da reforma urbana viveu um período de balanço e, no bojo das análises, críticas e avaliações, o plano diretor participativo foi um tema que ocupou lugar de destaque. Neste campo, contudo, o prestígio e a associação de sentidos ao plano diretor mudaram no decorrer da trajetória do movimento: de imposição dos setores conservadores na Constituição de 1988 a instrumento importante na concretização dos princípios da reforma urbana. A investigação desta transformação foi o objeto da pesquisa que concluiu pela tese de que o plano diretor serviu - na medida em que forneceu o conteúdo, a arena e legitimou uma estrutura de autoridade - à afirmação de um consenso sobre os elementos constituintes da ideologia que institui uma determinada ordem política no corpo social da reforma urbana. Para demonstração desta tese, procurou-se compreender as contradições entre o ideário consensuado do planejamento urbano politizado e as questões com as quais se defronta a reforma urbana. Argumenta-se, além disso, que a contradição entre o predomínio do discurso do direito à cidade e a permanência da cidade como negação do direito está fundada não apenas no confronto com outras ideologias – como as que propugnam a competitividade e o empresariamento urbanos –, mas nos próprios limites, lacunas e justificação de valores e autoridades do planejamento urbano politizado.

Exposição: Estrutura de mobilização, projetos políticos e repertórios do FNRU

Expositor: Ramon José Gusso (Instituo Ambiens; Universidade Positivo)

Resumo: A permanência do FNRU como um dos principais atores relacionados à política urbana no Brasil se dá primeiramente em decorrência da sua estrutura mobilizadora constituída nas últimas duas décadas. Hoje esta rede inclui movimentos sociais, sindicatos, ONG’s, grupos de pesquisa, redes internacionais de apoio e de financiamento, bem como o vínculo com atores governamentais e outras redes movimentalistas. Contudo, os múltiplos atores envolvidos na trama não possuem o mesmo grau de participação, conexão e de centralidade. No interior do Fórum são as ONGs que exercem uma maior centralidade, sendo as responsáveis por estimular a participação, por produzir e fornecer os referenciais teóricos e a própria história do movimento, ao selecionar fatos, lutas e conquistas, centralizando também a pauta e o conteúdo do que se discute. A atuação do FNRU - marcadamente próxima às arenas institucionais - se explica também pelo compartilhamento de um projeto político participativo-democrático com o Partido dos Trabalhadores, resultando muitas vezes em múltiplas militâncias e que em vários momentos intermediou o trânsito de militantes do FNRU para o interior de governos municipais e para o Governo Federal, em particular para o Ministério das Cidades, seja por meio de cargos de essência técnica ou com caráter mais político. Essa relação entre o governo petista e FNRU, diferente de uma simples cooptação, tem sido fruto de estratégias e repertórios de ação coletiva construídos a partir da década de 1980, mas que se fortaleceram com a chegada o PT no governo federal.

Exposição: A despolitização da Reforma Urbana: institucionalidade e profissionalização

Expositora: Maria de Fátima Tardin Costa (UFRJ)

Resumo: O projeto de reforma urbana no Brasil foi fundamentado num ideário que parte da possibilidade de um espaço de lutas por ampliação de direitos sociais referentes ao direito à cidade justa e igualitária, que pressupõe uma gestão democrática da cidade. Entretanto, essa arena de disputa entre a cidade democrática versus interesses da produção capitalista da cidade sempre esteve inviabilizada. Diante das transformações decorrentes da reestruturação do capitalismo mundializado, o projeto da Reforma Urbana não se constituiu como uma forma de enfrentamento contra o capital e a especulação imobiliária, assim como não se constituiu em instrumento de organização de modos de sociabilidade para a luta libertária e por emancipação humana. Inserida no contexto abstrato do direito burguês, a bandeira da reforma urbana tornou-se um fetiche para a luta por terra e moradia na cidade: os movimentos tornaram-se ONGs e os teóricos renderam-se ao positivismo jurídico, prestando-se ao papel de mediadores de conflitos sociais cumprindo a função de formatar a participação social aceita pelo Estado. Nos limites de sua existência como projeto de mudanças jurídico-institucionais, não há lugar para os elementos democráticos de modernização que estavam na origem do projeto. No que concerne às políticas urbanas, o Projeto da Reforma Urbana “se efetiva” apenas como “avanços” no campo da institucionalidade e no campo profissional. Desta forma, a própria luta pela reforma urbana, através de seu fórum, acabou limitando as possibilidades emancipatórias das massas quando legitimou espaços consentidos de participação como necessários para o enfrentamento dos antagonismos sociais que se expressam nas cidades.

Exposição: O Conselho das Cidades e a crise de identidade do FNRU: da luta contra o processo de espoliação urbana ao papel de fiador da política urbana implementada pelo Governo Federal

Expositor: Marcos de Faria Asevedo (Militante da luta pelo direito à moradia e contra as remoções de favelas no Rio de Janeiro)

Resumo: Desde a ascensão do PT ao governo federal, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana, representado pelo FNRU, atuou em estreita colaboração com o Ministério das Cidades, assumindo também sua pauta: programas, orçamento, elaboração de projetos de lei e organização das Conferências das Cidades. Essa aliança rendeu ao FNRU o papel de interlocutor privilegiado do Ministério das Cidades e garantiu sua hegemonia sobre o processo de Conferências e na composição do Conselho. A atuação no Conselho das Cidades, relegado à discussão sobre marcos regulatórios, assume centralidade por possibilitar a negociação do atendimento pontual das demandas dos movimentos de moradia organizados no FNRU. A partir do 2º governo Lula, a política urbana será definitivamente “capturada” pela orientação mais geral do governo, de alinhamento com interesses do setor privado, abandonando quaisquer compromissos com a perspectiva de construção de uma política redistributiva, que contraditasse o processo de espoliação urbana. Tem início a era dos “programas estruturantes”, que dão suporte a novo ciclo de acumulação do capital com base em grandes obras de infraestrutura ou, no jargão oficial, “inauguram um
novo ciclo de desenvolvimento”: PAC; “Minha Casa, Minha Vida”; e investimentos relacionados à Copa 2014 e aos Jogos 2016. Preso ao compromisso de sustentação política da coalizão entre PT e setores conservadores, o FNRU abre mão do ideário da reforma urbana para celebrar, com os empresários, a “retomada dos investimentos”, atuando para legitimar o discurso dos “avanços” conquistados e, mais do que isso, buscando enfatizar sua própria influência na formulação e implementação da política urbana.

Exposição: Ideologia positivista, planejamento urbano e desenvolvimentismo

Expositor: Frederico Lago Burnett (UEMA)

Resumo: Ainda que tenha suas origens na década de 1960, o Projeto da Reforma Urbana tem vínculos históricos com a ideologia positivista do Planejamento Urbano nacional que, com o agravamento da crise das cidades brasileiras, emerge a partir da década de 40 e assume, desde então, papel de destaque no discurso do poder político. Tomando o industrialismo como base do progresso social, que tem no Estado “previsor e provedor” a entidade reguladora do Capital e do Trabalho, aquele Planejamento Urbano teve papel central na construção de um projeto de cidade no qual o futuro das camadas populares deverá se subordinar à expansão capitalista, o que resulta no seu passe-livre perante qualquer regime e leva ao atual discurso hegemônico do “desenvolvimento urbano” como solução para a crise sócioespacial das nossas cidades. Produzido pelo Estado brasileiro constituído na Revolução de 30, que pretendia colocar a burocracia estatal acima das classes e em defesa do interesse nacional, o Planejamento Urbano se legitima durante o período desenvolvimentista dos anos 50, se mostra funcional à tecnocracia do regime militar, se expande e profissionaliza nacionalmente, sempre depositando no poder do Estado suas esperanças de reformar e dar face humana à cidade capitalista. Com a hegemonia neoliberal e o desmonte do Welfare State do final do século XX, esta crença entra em colapso e leva o Planejamento Urbano à fórmula do “participacionismo”, identificando seu discurso com o Projeto da Reforma Urbana, mas mantendo seu caráter de colaboração de classes, sempre favorável ao desenvolvimentismo.

Publicado
2019-05-19
Seção
Sessão Livre